Newsletter 088 (PT)
Desde as três semanas da descoberta, no dia 31 de dezembro, do coronavírus na cidade de Wuhan, são 2880 casos (2821 na China), com 81 mortes (todas na China), no momento de envio desta edição. As viagens do Festival de Primavera/Ano Novo Lunar aumentaram a velocidade com que o vírus se espalhou, atingindo todas as províncias do país, exceto o Tibete. Já chegou em Hong Kong, Taiwan, Macau, Japão, Coreia do Sul, EUA, França, Austrália, Tailândia, Singapura, Vietnã e Nepal.
Bons leitores da Shūmiàn já estão, a esta altura, familiarizados com o 春节 (Chūnjié), ou Festival da Primavera. Para quem ainda precisa de um lembrete, o período compreende o início de um novo ano pelo calendário lunar e é celebrado em diversos países asiáticos. No caso específico da China, a comemoração se estende informalmente por mais de um mês e tem consideráveis implicações econômicas. Neste ano, para além de gastos extraordinários com alimentação, bebidas, entretenimento e troca de presentes, são esperadas centenas de milhões de viagens de trem, avião e ônibus país afora — uma importante injeção de dinamismo em uma economia em desaceleração.
A coincidência do festival com a epidemia do coronavírus, deste modo, é preocupante. Em meio a expectativas crescentemente negativas, consumidores e investidores adiam ou cancelam planos de gastos e investimentos. Estimativas preveem que, mesmo no melhor dos cenários, a crise pode levar a uma queda de cerca de 1% do produto interno bruto real do país no ano. Dentre as áreas diretamente afetados pelo fenômeno, destaque tanto para o turismo quanto para a gastronomia — setores que, tradicionalmente, têm no Ano Novo lunar seu período mais lucrativo do ano. O Ministério dos Transportes já informou que houve queda de 28,8% no uso de transportes em relação ao feriado no ano passado.
Naturalmente, a conjuntura se tornou um importante teste de liderança para o governo central da China. Estariam as autoridades do país, afinal, gerenciando apropriadamente a situação? O exército chinês está mobilizado para conter a expansão do vírus, e, dentre outras medidas, novos hospitais estão sendo rapidamente construídos para tratar vítimas. Desde quarta-feira (22), ademais, tanto a cidade de Wuhan, origem da epidemia, quanto uma parte de seus arredores estão praticamente interditadas. Pequim segue, porém, silenciando informações sobre a expansão da doença e, para alguns, as respostas oficiais à crise não foram suficientemente ágeis. Até o momento, 1,6 bilhão de dólares (11,2 bilhões de yuans) foram alocados para o combate ao vírus pelo governo.
O prefeito de Wuhan, Zhou Xianwang, fez uma declaração no domingo (26) relatando que mais de 5 milhões de pessoas saíram da cidade durante o Ano Novo Lunar, segundo dados disponíveis. A maioria foi para o interior da província de Hubei (cuja capital é Wuhan). O prefeito também admitiu em rede nacional que houve falha na sua atuação, ao esconder informações e não usar as informações já existentes para a contenção, e ofereceu a sua demissão — mas relembrou que a divulgação de informações precisa ser autorizada por gente acima dele.
O período de incubação do vírus é entre 1 e 14 dias, com recente descoberta de que há transmissão entre humanos, e há a grande possibilidade do número de mortes ser sub-relatado. A velocidade de reprodução do vírus ainda é incerta, pois há poucos dados — e especialistas estão colocando os números entre 1,4 e 2,5 (a SARS tinha taxa de reprodutibilidade, a R0, entre 2 e 5). Durante a declaração do prefeito de Wuhan, ele afirmou que espera-se um aumento acelerado nos números de casos confirmados, mas as autoridades ainda pedem calma.
O governo está em cima, emitindo alertas de que o tema não deve ser acobertado e quem fizer isso será punido severamente — uma abordagem diferente de como foi durante a epidemia de SARS. Foi criado um sistema de denúncias de oficiais do Partido que não estejam implementando medidas de segurança ou estejam escondendo informações durante a crise. A denúncia pode ser feita via WeChat.
Com 15 cidades em quarentena no país e ônibus interprovinciais proibidos para conter a circulação de pessoas, há uma preocupação com o fornecimento de alimentos chegando até as cidades — que continua sendo feito com apoio do governo, que também está importando e recebendo doações de medicamentos e materiais hospitalares. Com a demanda inesperada, foi emitido um alerta para departamentos locais vigiarem o aumento dos preços, especialmente de máscaras e itens como desinfetantes e medicamentos antivirais. O aumento foi considerado antiético dada a situação.
Com a chegada do vírus em outros países, algumas embaixadas localizadas na China estão começando a organizar a remoção de cidadãos e corpo diplomático. As pessoas deverão ficar em quarentena ao retornar aos seus países.
EUA, Canadá, França e Austrália iniciaram medidas de prevenção e países ainda sem casos também já estão adotando precauções, como a instalação de leitores de temperatura para verificar a febre de passageiros, registrando o contato de pessoas que estavam na China e emitindo alertas. A Malásia cessou a emissão de vistos para chineses vindos da província de Hubei. Apesar de ainda não terem casos no continente africano, os governos estão se precavendo, dado o alto número de voos da China para a região.
Relatos de cidadãos chineses sofrendo ataques ou sendo banidos de espaços em outros países estão surgindo nas redes sociais. Tablóides publicam vídeos sem verificação, criando pânico. Ataques motivados por xenofobia foram comuns durante e após a crise da SARS. É preciso ficar de olho.
Apesar da pressão, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não acredita que seja necessário declarar uma epidemia global (segundo reunião do dia 12 de janeiro), dados os números atuais. Mas o conselho da Organização está pedindo uma nova reunião antes do final de janeiro. Será realizada uma reunião emergencial do chefe da OMS com o governo em Pequim hoje.
A teoria vigente é que o vírus surgiu num mercado de frutos do mar que vendia animais selvagens, e que agora está fechado pelas autoridades. Desde então, nas redes sociais surgem vídeos e discussões — e comentários preconceituosos — sobre a alimentação dos chineses. Dentro da China, são as pessoas de Wuhan que estão sofrendo com comentários pejorativos do resto do país, mas há uma pressão geral para a proibição de consumo de animais selvagens. O governo decidiu banir temporariamente a venda e compra de animais selvagens, conforme documento traduzido pelo China Law Translate.
Um artigo recém publicado por um grupo de pesquisadores chineses analisou os 41 primeiros casos (o primeiro hospitalizado foi em 1 de dezembro) e questiona se realmente surgiu do mercado. Dos 41 casos, 13 não tinham ligação com o mercado de animais. A questão permanece em debate.
O retorno do ano letivo também está sendo afetado. A Universidade de Wuhan já havia adiado o começo do semestre, que estava previsto para 2 de fevereiro, até metade do mês. Agora, escolas e universidades em Xangai e em Pequim adotaram a medida por tempo indeterminado — uma data deve ser decidida durante a semana — e avisando estudantes para não retornarem no período previsto (17 de fevereiro). Os principais cinemas e atrações turísticas também estão com as portas fechadas até segunda ordem, incluindo a Cidade Proibida em Pequim e a Disney em Xangai. E em Xangai, estabelecimentos comerciais irão reabrir apenas a partir do dia 9 de fevereiro.
Um infográfico explicativo do South China Morning Post. Como sempre, quem mais sofre com calamidades são as populações mais vulneráveis — no caso da China, os migrantes pobres do país, muitas vezes pouco vistos pelo poder público. Além disso, os médicos chineses — já notoriamente sob muita pressão do sistema de saúde — estão ganhando destaque e apoio nas redes sociais. Cerca de 1300 médicos de outras províncias foram enviados para Wuhan.
Para prevenir rumores, uma editora de Guangdong especializada em ciência e tecnologia publicou um e-book de 50 páginas em linguagem simples sobre mitos e passos para prevenção.
Em tempo real: acompanhe a expansão geográfica do vírus através do mapa interativo desenvolvido pelo Center of System Science and Engineering com dados da Organização Mundial da Saúde e de centros de controle de doenças dos EUA, da China e da Europa.
Episódio familiar: para muitos, a crise do coronavírus tem importantes paralelos com outras epidemias do passado. Lembre aqui de dois notáveis casos: a SARS na China em 2002-2003, e a MERS na Arábia Saudita em 2012.
Mas os memes seguem: a produção de memes na internet chinesa continua apesar da crise. Especialmente sobre como lidar com a quarentena.
“Indústria Americana”: o documentário indicado ao Oscar 2020 está disponível no Netflix brasileiro. Conta a história de uma fábrica em Ohio, nos Estados Unidos, que estava falida e foi adquirida por um empresário chinês. Para pensar as diferenças culturais e a conexão humana que existe mesmo assim.