Foto de DAVIDSON L U N A via Unsplash.
Edição 356 – Tecnologias chinesas vão do agronegócio à agricultura familiar brasileira

Identidade digital. A partir desta semana, usuários de serviços de internet na China podem criar uma identidade digital única para ser cadastrar em diferentes aplicativos e sites, reduzindo assim o compartilhamento de seus dados com as empresas. Esse tipo de conveniência tem um preço claro, da perspectiva da cibersegurança: dados sobre o uso dos diferentes apps passam a ser centralizados no provedor da autenticação. Mas, como observou Jeremy Daum, do China Law Translate, no caso específico da China isso pode não ser tão relevante, porque o provedor é o governo chinês, que desde 2017 já exige que os cadastros em plataformas sejam associados à identidade do usuário; além do mais, o novo esquema é voluntário e, ainda na visão de Daum, não haveria motivos para o governo torná-lo obrigatório.
Essa opinião não é compartilhada por todos, claro. Ativistas e pesquisadores de áreas como direito e liberdade de expressão na web se mostram preocupados com o que consideram uma evolução do sistema de controle da internet chinesa, uma vez que o governo deixaria de depender da colaboração das plataformas para monitorar o comportamento de seus usuários. Apesar disso, segundo o China Digital Times, assim que o sistema foi anunciado e lançado para testes há um ano, mais de 80 apps se cadastraram para implementar a nova autenticação e, de acordo com dados do governo, mais de seis milhões de cidadãos já teriam criado suas identidades apenas na última semana.
E os nossos empregos com a IA? O medo de ficar desempregado por causa de uma inteligência artificial nunca foi uma pauta tão quente quanto hoje. Na China, vozes de peso começam a soar o alarme sobre os impactos do avanço dessa tecnologia nos empregos. Cai Fang, um dos principais economistas do país e conselheiro do Banco Central, alertou que o desemprego estrutural está sendo agravado pela substituição de trabalhadores por modelos como os Large Language Models (LLMs) em postos que exigem média e alta qualificação. Apesar de Pequim impulsionar políticas como a AI+ Employment, com plataformas de matching automatizado e testes-piloto de auxílio-desemprego voltado para trabalhadores afetados por IAs, o desafio é de outra escala. Especialistas sugerem desde reformas profundas na seguridade social até medidas como “renda inicial futura”, no estilo de uma renda básica universal, sinalizando que a transição digital chinesa pode não apenas moldar o futuro da produtividade, mas também demandar novas arquiteturas de bem-estar.
Proibido roubar. Desde março, sob recomendação do Comitê Central do PCCh, há um ímpeto político na China para a renovação da campanha anticorrupção dos oito pontos. Auge do discurso anticorrupção que é central na liderança de Xi Jinping (e pauta recorrente por aqui), a Regulação de Oito Pontos (八项规定), lançada em 2012, direciona o foco para o comportamento de membros do Partido. Como parte da renovação, o Comitê havia pedido um trabalho de reeducação de quatro meses (que se encerra agora em julho), incluindo sessões de estudo e penas mais pesadas para oficiais do Partido pegos com o pendrive no banheiro. O China Policy publicou uma análise da campanha, olhando para alguns dos dados e premissas, discutindo a redução de desperdício e de burocracia como um antídoto de desenvolvimento na dinâmica da guerra tarifária com os Estados Unidos.

Morde e assopra. Nos bastidores da rivalidade sino-americana, as últimas semanas revelaram uma coreografia contraditória entre trégua e tensão. De um lado, está a dança ensaiada de reaproximação da Casa Branca, por meio da qual o presidente dos Estados Unidos sinalizou uma possível retirada de tarifas sobre certos produtos chineses, tentando destravar exportações de terras-raras e retomando a conversa com Xi Jinping. Mas, no mesmo compasso descompassado, uma investigação da ProPublica acendeu um alerta no coração do sistema de segurança digital estadunidense: engenheiros da Microsoft baseados na China atuaram, até recentemente, no suporte técnico de sistemas de nuvem críticos que atendem o Departamento de Defesa dos EUA. Esses profissionais atuavam sob a presença de “escoltas digitais” norte-americanas cujo conhecimento técnico do trabalho realizado era muitas vezes precário. O episódio levantou preocupações sobre vulnerabilidades cibernéticas e possíveis brechas de inteligência.
Em resposta à pressão de congressistas e ao alvoroço da opinião pública, a Microsoft anunciou que engenheiros chineses deixarão de atuar nesses contratos, e o Pentágono já conduz uma investigação interna mais profunda. A bagunça confunde, e a mensagem soa mais como: mesmo em momentos de chantagens tarifárias e uma suposta détente comercial, Washington quer mais um pretexto para não recuar em sua vigilância, e cada gesto de aproximação carrega uma desconfiança embrionária de que a cooperação econômica segue sempre vigiada por sensores geopolíticos.
Do agronegócio à agricultura familiar. Uma nova frente de cooperação tecnológica entre Brasil e China mudou um pouco as discussões sobre soberania alimentar e digitalização da agricultura. No dia 11 de julho, a estatal chinesa Sinomach Digital Technology Corporation assinou, em Brasília, um memorando de entendimento com a Prefeitura de Maricá (RJ) e a startup brasileira OZ.Earth. A inovação desse acordo foi o foco direto na agricultura familiar e o fato de que a parceria prevê não apenas o envio de maquinário adaptado à produção de campo, mas também a construção de fábricas de máquinas agrícolas inteligentes, além de plataformas digitais de gestão rural em áreas de reforma agrária. A Sinomach já atua em países da África e Ásia com soluções de “agro digital” e agora tem mirado no Brasil como novo polo. O momento é bem estratégico, uma vez que os BRICS+ têm discutido como intensificar o compartilhamento de conhecimento e tecnologias. O movimento passa um sinal claro de caminhos concretos para descentralizar a inovação agrícola, não mais apenas no topo da cadeia produtiva, mas junto às cooperativas e assentamentos.

Casamento, dinheiro e tráfico de pessoas. Como já contamos diversas vezes por aqui, o desequilíbrio entre o número de mulheres e homens adultos na China têm levado muitos chineses a buscar parceiras em outros países, principalmente da Ásia. A revista estadunidense New Lines publicou recentemente uma reportagem explorando como essa dinâmica tem criado desafios no Paquistão, onde mulheres católicas são recrutadas para casamento com homens chineses. No país majoritariamente muçulmano, essas mulheres fazem parte de uma minoria pobre, e suas escolhas matrimoniais são fortemente influenciadas por familiares que se beneficiam financeiramente da união. Embora o desejo de casar com um estrangeiro e mudar de país seja legítimo, o contexto levanta sérios questionamentos sobre consentimento; o fato da tradição matrimonial das duas culturas envolver trocas financeiras complica ainda mais a distinção entre uniões legítimas e casos de tráfico de pessoas – que é fortemente caracterizado pela travessia de fronteiras mediante coação ou fraude para fins de exploração, muitas vezes sexual, e envolvendo ganho pecuniário. A prática de casamentos entre mulheres paquistanesas e homens chineses se estabeleceu a partir de 2015, quando os dois países reforçaram laços por conta da Iniciativa do Cinturão e Rota, e casos de tráfico de pessoas disfarçado de matrimônio vêm sendo identificados pelas autoridades dos dois países pelo menos desde 2018.

Literatura: A escritora Lijia Zhang (de Lotus Flower) indicou o que considera os cinco melhores livros de ficção chinesa do século XX. Dentre eles, dois já apareceram no nosso Clube do Livro (Balzac e a Costureirinha Chinesa e Viver).
Clube do Livro: Aliás, o nosso próximo encontro será em 11 de agosto, às 20h, para discutir a obra Cisnes Selvagens, de Jung Chang – livro que inaugurou o Clube lá em 2021. Para ler com a gente, é só se inscrever na newsletter do Clube.
Estudos: O Dialogue Earth lançou um curso gratuito em três partes sobre a atuação global da China na justiça climática.
Anualmente, Taipei realiza um simulado de ataques aéreos para treinar a população sobre como reagir em caso de invasão. Neste vídeo, o South China Morning Post mostra um pouco do 41o exercício, ocorrido na última quinta-feira (17).
