Foto: Kremlin.ru, CC BY 4.0, via Wikimedia Commons.
Edição 362 – Vladimir Putin e Kim Jong-un vão a Pequim

Meses difíceis para o setor industrial. Nesta quarta-feira (27), Pequim anunciou que o lucro de indústrias nacionais teve queda em julho pelo terceiro mês consecutivo. Outro indicador que não vai bem é o da produção industrial: ao que tudo indica, agosto deve seguir a sequência contração que vem desde abril – dados oficiais devem ser publicados apenas neste domingo (31). Mas há razão para otimismo sobre os próximos meses: a queda dos lucros do setor está em ritmo de reversão (puxada pelo bom desempenho de produtos de alta tecnologia), o tarifaço de Donald Trump pode ser derrubado pela justiça dos EUA a partir de outubro, e há quem acredite que o fim do de minimis (adiado em fevereiro, lembra?) vá favorecer empresas chinesas como Temu e Shein, que teriam se preparado para driblar os impostos. Tudo isso ajudaria a retomar o ritmo de exportações para os Estados Unidos, enquanto o desafio de aquecer o consumo doméstico sofre com uma população mais focada em poupar e investir.
Para refletir sobre a atividade industrial chinesa a longo prazo, dois textos recentes são úteis. Em uma entrevista para a revista estadunidense Wired, o pesquisador Dan Wang explicou sua teoria de que o ritmo acelerado do crescimento chinês das últimas décadas poderia ser explicado pela formação de sua elite política, majoritariamente em áreas da Engenharia. Segundo Wang, isso levaria a um “estado engenheiro” mais disposto a ser ágil e cometer erros em nome do desenvolvimento industrial e tecnológico do país – em contraste com os EUA, que seriam uma “sociedade de advogados”, mais lenta e cautelosa. O salto de quantidade e qualidade da produção industrial da China, na visão do cientista político Paul Musgrave em sua newsletter, seria a razão pela qual marcas chinesas vêm se tornado não apenas uma alternativa acessível, mas muitas vezes preferíveis e até inevitáveis (pense no Labubu) ao redor do mundo. Assim, por meio dessas marcas, o país supera preconceitos e abre portas em relações comerciais, desafiando a hegemonia dos Estados Unidos, algo que parecia impensável há poucas décadas.
Cripto com características chinesas. Se em 2021 a China parecia ter enterrado de vez qualquer ambição digital ao banir criptomoedas, agora Pequim ensaia uma reviravolta estratégica. Segundo esta matéria da Reuters, o Conselho de Estado deve aprovar em breve um plano para permitir stablecoins lastreadas no yuan, um passo visto como fundamental para a internacionalização da moeda chinesa. A lógica é simples: criar versões digitais do yuan, com valor estável e transações instantâneas, para competir com as moedas digitais atreladas ao dólar, que hoje são maioria no mercado. Essa decisão viria em um momento em que a fatia do yuan nos pagamentos globais caiu para 2,88%, bem atrás do dólar, que responde por quase metade do fluxo financeiro internacional. Hong Kong e Shanghai liderariam a implementação local, enquanto no plano externo a estratégia seria discutida no encontro da Organização para Cooperação de Xangai (SCO), neste domingo (31) e segunda-feira (1). Mais que inovação financeira, a aposta seria geopolítica: transformar o yuan digital em uma alternativa viável à moeda americana nas trocas internacionais e reposicionar a China na arquitetura monetária digital global.

Um documentário de três horas explica o que todo mundo quer saber: como microchips da estadunidense Nvidia chegam à China? Como nada neste tema é simples, o filme, feito por um jornalista independente, foi removido do Youtube – mas o China Talk conta aqui como assistir. No mesmo texto, além do contrabando, o autor do documentário conta como essas políticas restritivas afetaram o mercado de games no mundo. Em meio a sanções e guerra comercial entre EUA e China, desde 2022 microchips estadunidenses não podem ser vendidos para o país asiático (com algumas exceções). Oficialmente, a administração Trump fala em questões de segurança, já que esse tipo de produtos têm uso duplo (comercial e militar). Para quem quer saber sobre a Nvidia e a relação dela com China e Estados Unidos, vale esta leitura da The Economist. Enquanto produtos da Nvidia seguem raros no país, a chinesa Alibaba estaria produzindo chips próprios para atender a demanda.
Desfiles, partilhas submarinas e declarações da famosa realpolitik chinesa. No dia 3 de setembro, Vladimir Putin e Kim Jong-un estarão lado a lado em um desfile militar em Pequim. A data marca o aniversário da rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial, e a lista de convidados é um gesto calculado de solidariedade entre os países e sua resistência a Washington. Como contamos por aqui, essa união fez a China abrir mão de sua “neutralidade” na guerra da Rússia contra a Ucrânia sob o cálculo de que uma vitória ucraniana daria muito espaço aos EUA para voltar seus canhões estratégicos contra a Ásia. Somando a esse tabuleiro, Rússia e China realizaram, neste mês, a sua primeira patrulha conjunta de submarinos no Pacífico, percorrendo milhares de quilômetros entre o Mar do Japão e o Mar da China Oriental. O exercício foi interpretado como um gesto de “confiança estratégica”, reforçando a interoperabilidade naval, ou capacidade de operações conjuntas.
O fio que conecta esses episódios é a construção, tijolo por tijolo, de uma arquitetura de dissuasão que tem misturado política simbólica, diplomacia e presença militar no terreno, onde todos parecem estar ganhando: para o Putin, é a chance de escapar de uma suposta condição de “pária” aos olhos do ocidente; para Kim, um palco favorável para ampliar presença; para o Partido Comunista da China, a confirmação de que a narrativa da multipolaridade cada vez mais se materializa, na prática, longe dos EUA – mesmo que ao custo de assumir riscos crescentes em sua relação com o Ocidente.

Exaustas do mundo: Uni-vos! É isso que as cansadas mães solos da China têm feito, construído suas próprias vilas para criar os seus filhos e aplacar a exaustão de exercer a maternidade sem auxílio. Como conta a Sixth Tone, a China tem cerca de 30 milhões de mães solo, e um modelo que tem se popularizado nas redes sociais é o de apoio mútuo: mulheres que buscam interessadas em morar juntas em busca de divisão de tarefas, companhia, e mais qualidade de vida. Os relatos trazidos pela reportagem são muito importantes, e mostram que os ganhos não se limitam às mães, mas são percebidos pelas crianças.
Qualidade de vida entre os grandes prédios. Na última semana de agosto, Pequim apresentou um novo projeto de política urbana que promete criar até 2035 “cidades populares modernas”, com foco em qualidade de vida, sustentabilidade e resiliência, segundo a Xinhua. O plano prevê habitações verdes e inteligentes, serviços de cuidado para idosos e crianças, infraestrutura médica de ponta, espaços compartilhados e até mecanismos de controle para poluentes emergentes, como os microplásticos. O projeto também inclui a expansão de planos de prevenção e resposta a desastres urbanos, uma prioridade em tempos de enchentes cada vez mais frequentes e ondas de calor que pressionam os centros urbanos. O plano não veio do nada: em julho, a China realizou a primeira Central Urban Work Conference em dez anos, ocasião em que abandonou o modelo de crescimento baseado na expansão urbana desenfreada que alimentou a especulação imobiliária e produziu as famosas “cidades fantasmas”, além de uma onda de endividamento público e privado. Agora, o discurso é de transição, tendo como motor central a economia aliada ao bem-estar urbano.
É refresco. Uma investigação do New York Times revelou que a China estaria expandindo silenciosamente sua presença em eleições locais nos EUA, especialmente em Nova York e São Francisco. Associações comunitárias conhecidas como hometown associations, que reúnem imigrantes da mesma província chinesa, passaram de grupos de acolhimento a ferramentas úteis para o consulado chinês em Manhattan, apoiando ou minando candidaturas conforme os interesses de Pequim. Pelo menos 50 organizações ligadas à China teriam supostamente atuado em campanhas nos últimos cinco anos, segundo o jornal. Casos semelhantes foram documentados na Califórnia, onde grupos pró-Pequim, com suporte de diplomatas, teriam organizado protestos para silenciar dissidentes. Para críticos, trata-se da exportação do padrão doméstico de repressão à dissidência para o território americano, uma demonstração de como Pequim busca disputar narrativas políticas. Para outros, talvez seja os EUA provando do próprio remédio.

Exposição: De agosto a setembro, uma mostra no centro Tai Kwun, em Hong Kong, celebra a tradição local de filmes de tríades (as máfias chinesas). Mesmo se não der para ir conferir pessoalmente, vale ver o trailer aqui.
Fantasia: Em entrevista para a Folha de S. Paulo, a escritora sino-americana R.F Kuang celebra seu novo livro Katábasis, do gênero fantasia acadêmica, que acabou de chegar ao Brasil.
Marketing: Assim como um bocado de internautas chineses, também estamos obcecados com a nova campanha da perfumaria chinesa Documents, fotografada por Jason Zhang Weiming.
Chungking Mansions não é apenas o cenário de um dos filmes mais famosos de Wong Kar-Wai (por aqui, o nome do filme é Amores Expressos). Como mostra este vídeo do South China Morning Post, o prédio é um centro da globalização de baixo custo, onde pessoas de mais de uma centena de países convergem para fazer negócios, celebrar suas culturas, e dormir.
