As cooperativas rurais de crédito na China

Apesar de importante, o campo chinês não costuma chamar tanto a atenção de observadores quanto as cidades do país

Casa no campo na província de Yunnan. Créditos da imagem: Frank Zhang on Unsplash

Por Bruno Palombini Gastal

O campo chinês normalmente não chama tanto a atenção de observadores quanto as cidades e a indústria, âmbito no qual o desenvolvimento recente do país foi mais marcante e surpreendente. Da mesma forma, entre tantas instituições que marcaram o desenvolvimento recente do Estado chinês, as cooperativas rurais de crédito (CRCs) são em larga medida desconhecidas. No entanto, poucas instituições no país demonstraram tanta resiliência e capacidade de adaptação quanto elas, e sua história é, de certa forma, uma síntese da história da política rural do Partido Comunista Chinês.

Provavelmente ainda mais do que para trabalhadores urbanos, o crédito é essencial para a população rural, na medida em que essa porção da população precisa fazer frente ao período de entressafra, além da constante possibilidade de más colheitas e de problemas de saúde. Dessa forma, os camponeses chineses historicamente se utilizaram de mecanismos de crédito informais para lidar com períodos de necessidade, que podiam tanto ser empréstimos de amigos, vizinhos e familiares quanto de agiotas, que os concediam sempre com altos juros. O principal objetivo das CRCs era livrar os camponeses da perigosa dependência frente a estes últimos, a qual ocasionava enormes perdas para devedores e era um fator de instabilidade social. As primeiras unidades foram criadas em 1945, ainda antes do triunfo da Revolução, dentro de territórios controlados pelo Partido Comunista, e se beneficiavam de uma tradição de auxílio e crédito mútuo no âmbito rural desenvolvida pelo menos desde o século XVII.

As CRCs foram uma das primeiras iniciativas no sentido de desenvolver uma política de seguridade social para o meio rural da China, e, ao longo da década de 1950, disseminaram-se rapidamente pelo país, chegando a atingir a marca de mais 100 mil unidades. Eram entidades vinculadas ao Estado, mas que inicialmente eram geridas por seus cooperados. Não obstante, esse último elemento, que envolvia horizontalidade e gestão local, foi progressivamente abandonado em prol de um modelo mais verticalizado.

Durante o processo de coletivização das terras na segunda metade dos anos 1950, as CRCs passaram a integrar o sistema de comunas implementado por Mao Zedong, num sistema conjunto com cooperativas ligadas à produção e à comercialização de bens agrícolas. Em seguida, na década de 1970, elas foram incorporadas pelo banco central chinês, o Banco Popular da China (BPC) e, a partir do período de abertura, pelo Banco Agrícola da China (BAC). Em ambos casos, as entidades se tornaram um mecanismo de transferência do excedente econômico do campo para a cidade, já que eram obrigadas a manter parte de seus depósitos junto a filiais mais centrais desses bancos que eram usados principalmente para financiar empreendimentos industriais — recebendo, por isso, juros muitas vezes inferiores aos praticados nos empréstimos das CRCs.

Por outro lado, com a abertura econômica da década de 1970, elas também passaram a investir — em escala moderada — em pequenas empresas rurais, algumas das quais terminaram por ser exitosas. Seria o início de um movimento geral em direção a uma lógica de mercado, na linha do que acontecia com o país como um todo e inclusive com cooperativas urbanas de crédito, que são uma história à parte. Em 1996, um novo marco institucional foi anunciado para as CRCs. Em primeiro lugar, a autoridade responsável por elas voltou a ser o BPC, mas com uma função principalmente de supervisão: elas recuperariam certo grau de autonomia. Nesse sentido, elas também foram pressionadas a se tornarem auto-sustentáveis financeiramente, levando ao fechamento de um grande número de unidades deficitárias. Com isso, seu número caiu de cerca de 50 mil para 33 mil, passando a sua atuação a se dar de maneira mais concentrada a nível provincial. No mesmo período, em que os grandes bancos contraíam sua oferta de crédito à população rural, as CRCs se tornaram o principal mecanismo de difusão de programas de microcrédito do governo.

O passo seguinte desse movimento de deslocalização e “racionalização” foi a transformação de CRCs exitosas em bancos propriamente ditos. Aquelas que atingiram grandes dimensões em suas operações se tornaram bancos cooperativos rurais, enquanto que aquelas que atingiram dimensões muito grandes se tornaram bancos rurais comerciais, em sua maioria aquelas localizadas nas províncias mais desenvolvidas. Em alguns casos, inclusive, esses bancos abriram seu capital, dando a investidores internacionais a possibilidade de adquirir até 20% dele. Após isso, muito pouco restou da estrutura original cooperativista das CRCs.

Atualmente, há uma reemergência do cooperativismo na forma de novas cooperativas de crédito mútuo (como consórcios de crédito) e cooperativas de fazendeiros, ambos modelos tentando restabelecer a conexão com as localidades. Resta ver o quanto essas iniciativas serão capazes de se desenvolver e, assim, consolidar-se como uma alternativa confiável de crédito para a população do campo. Além disso, é importante analisar como elas vão se combinar com a disseminação das finanças digitais para mudar a cara do ecossistema de crédito na China rural.

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