Newsletter 100 (PT)
De acordo com dados oficiais divulgados na última sexta-feira (17), o produto interno bruto chinês registrou, no primeiro trimestre deste ano, uma queda de 6,8% em comparação ao mesmo período do ano passado. A contração, um atestado do poder destrutivo da pandemia do novo coronavírus, marca o fim de quase meio século de crescimento econômico ininterrupto na China.
A luta chinesa contra a recessão de sua economia, porém, parece seguir seus próprios caminhos. Enquanto alguns países estão depositando dinheiro na conta bancária de seus cidadãos para estimular a economia via consumo, a China tem evitado pagamentos diretos para reacender as contas no país. O fenômeno não surpreende: a taxa de poupança dos chineses é uma das maiores do mundo — uma família economiza, em média, 36% de sua renda disponível, em comparação com 7% nos Estados Unidos. Também há o receio de que pagamentos diretos não seriam convertidos em consumo, e, sim, em mais poupança. O que algumas províncias têm feito é fornecer um voucher específico com valor pré-fixado. No entanto, para cidadãos em situação de extrema pobreza, geralmente os que recebem o Dibao (低保) — o maior programa de transferência de renda incondicional do país — há pagamentos diretos.
Políticas para beneficiar empresas, com subsídios ou incentivos, estão sendo adotadas ao redor do mundo. O China Briefing reuniu uma longa lista com todas as decisões de governos locais e da administração central para auxiliar o desenvolvimento econômico em tempos de coronavírus. As políticas dizem respeito a pequenas, médias e grandes empresas. Vale dar uma olhada com atenção.
Retrospectiva: na nossa primeira edição, há dois anos, a guerra comercial ainda estava bem no começo. Desde então, as relações sino-estadunidenses pioraram, e continuam piorando a cada dia que passa. Três meses atrás, China e EUA assinaram a primeira fase do acordo. Agora, o que vem pela frente?
A seca no Mekong, o maior e mais importante rio do Sudeste Asiático, pode ser resultado de ações chinesas e falta de controle nacional de outros países sobre seus recursos, segundo um novo relatório. A China utiliza as águas da nascente do Mekong nos seus projetos de hidrelétricas: são 11 no total. Isso impede que as águas cheguem com a sua força normal aos países que ficam na desembocadura do rio. O governo chinês rejeitou os resultados da pesquisa.
As relações China-África estão em uma fase bastante delicada com os recentes acontecimentos em Guangzhou — mas será que isso é suficiente para mudar a trajetória das mesmas? Depende. No nível local, de percepção da imagem chinesa por africanos, sim. A “Diplomacia da Máscara” — como tem sido conhecida a ajuda humanitária chinesa para combater a COVID-19 no mundo — estava sendo bem recebida no continente, até que a notícia de despejos em massa de africanos residentes em Guangzhou eclodiu.
O incidente tem sido usado por alguns chefes de Estado da região para impulsionar sua base eleitoral com sentimento anti-chinês, sobretudo entre pessoas que relacionam suas perdas de renda e emprego com a forte entrada chinesa no continente africano. No entanto, no nível estatal, é pouco provável que as relações China-África mudem diametralmente. Há desconforto com a postura chinesa de não querer cancelar por completo a dívida de países africanos diante da pandemia. Contudo, o Eximbank chinês (o BNDES da China, a grosso modo) é um impulsionador de investimentos de longa data no continente, e não há sinais de que isso mude em um futuro próximo.
A posição chinesa na Europa também não anda bem. Conforme crescem as desconfianças quanto à transparência do país durante o surgimento e a evolução da pandemia do novo coronavírus, alguns dos principais governantes europeus endurecem suas posturas diante de Pequim. Em entrevista ao Financial Times, Emmanuel Macron deixou claro seu ceticismo. “Há coisas que aconteceram [na China] sobre as quais não sabemos”, declarou. Já no Reino Unido, fontes indicam que a crescente insatisfação com os chineses pode acabar por destruir os planos do primeiro-ministro Boris Johnson de permitir a inclusão da Huawei na construção da rede 5G do país.
Não bastasse isso, as relações da China com o seu maior vizinho também não passam por um bom momento. Conforme o novo coronavírus se espalha pela Rússia, milhares de chineses residentes no país querem voltar à sua terra natal. O movimento de imigração, que já tornou a pequena cidade fronteiriça de Suifenhe em um novo epicentro da epidemia na China, preocupa Pequim. Por um lado, os chineses não querem comprometer seu posicionamento diante de um de seus principais aliados. Por outro, o risco da formação de uma segunda onda da epidemia no país faz necessária a imposição de medidas de restrição — como o fechamento de fronteira — que não agradam a Moscou.
Wuhan revisou suas estatísticas e anunciou um aumento de 50% no registro de mortes pela COVID-19. O número, que antes era de 2.579 fatalidades, agora é de 3.869. Para alguns, a mudança repentina reforça a impressão de que os chineses não teriam sido sempre transparentes nos dados divulgados sobre os impactos do novo coronavírus no país. A China, porém, nega qualquer falsificação de informações. De acordo com autoridades locais, a correção se deve à atualização de relatórios médicos e à contagem de mortes fora de hospitais na cidade. A Organização Mundial da Saúde endossou a justificativa chinesa, afirmando que o processo de revisão é normal, devendo-se a um esforço de contabilizar casos ainda não documentados, e que também deve ocorrer nos demais países atingidos pela pandemia.
Ainda sobre Wuhan… Muito antes de a COVID-19 emergir, a cidade já estava na mira da comunidade médica chinesa, mas por outro motivo — a infraestrutura hospitalar era tida como pouco desenvolvida para atender aos mais de 11 milhões de habitantes da cidade. Em um encontro realizado em março de 2019, médicos e pesquisadores da Organização Mundial de Médicos da Família apontavam que Wuhan necessitava urgentemente de uma reforma no sistema de saúde.
Os dois principais problemas averiguados pelo encontro podem ser vistos em várias das maiores cidades da China (e também de outros países): um número de hospitais e de médicos aquém do necessário para o tamanho da população do país, e o desafio cultural de convencer a população a procurar médicos da família e hospitais particulares, de modo a não sobrecarregar os maiores hospitais públicos. Ainda que em maior número, os hospitais particulares carecem de reputação e confiança nas comunidades locais, além de não cobrirem mais planos de saúde.
Como falar sobre a comunidade LGBTQI+ na China? Lar de mais de 90 milhões de pessoas que se identificam no espectro LGBTQI+, o país que apenas em 1997 descriminalizou a homossexualidade tem ritmo e estratégia diferentes de muitos países do Ocidente para abordar essa questão. Para começar, o ativismo da comunidade LGBTQI+ é mais sutil do que no que Ocidente — mas bastante ousado quando analisado dentro do contexto histórico. Ativistas e marcas pró-LGBTQI+ costumam evitar menções claras, a fim de burlar a censura, preferindo nuances como as palavras “camarada”(同志) para se referir a “gay” (同性), e amizade, em vez de relacionamento.
A outra tática é entender que boa parte do tabu reside na importância de produzir herdeiros pela tradição confucionista de piedade filial, o que leva muitos ativistas a adotarem a frente de “resolver conflitos familiares de maneira harmônica” quando estão atuando, na verdade, por aceitação e inclusão no seio familiar.
Retrospectiva: lembramos que a nossa edição inaugural também falou de direitos LGBTQI+, infelizmente sobre um ataque a duas lésbicas, mas também de uma crescente esperança de mudança sobre aceitação no país. Desde então, foram idas e vindas, mas a legalização da união homoafetiva pode estar perto.
Um caso de estupro está dominando as notícias. O caso envolve o empresário Bao Yuming, ligado à gigante de telecom ZTE e vice-presidente do grupo de petróleo Jereh — dos quais se demitiu e foi demitido, respectivamente. Ele foi acusado de abusar sexualmente de sua filha adotiva desde 2015. A jovem, identificada pelo pseudônimo de Xingxing, então com 14 anos, foi à polícia com provas e foi ignorada. Ela foi diagnosticada com uma série de sintomas causados por estresse pós-traumático. A repercussão nas redes sociais está grande, especialmente com críticas aos policiais que ignoraram a denúncia de Xingxing — grupos de direitos humanos e feministas estão pressionando com importantes discussões sobre a idade de consentimento sexual na China. Hoje, é de 14 anos.
Fotografia: Wu Jianping passou uma década registrando a vida tradicional no distrito de Pudong, em Xangai, antes de a área se tornar o ícone de modernidade que é hoje. Fascinante.
Podcast: o episódio do Sinica discute o livro The Myth of Chinese Capitalism: The Worker, the Factory, and the Future of the World, de Dexter Roberts, jornalista que ficou em Pequim durante vinte anos cobrindo política e economia para a Bloomberg.
1920s: já que a temática é número 100, bom momento para ver essas filmagens feitas em Pequim quase 100 anos atrás. Aliás, vale relembrar a década de 1920, que veria surgir o Partido Comunista Chinês, e o início da guerra civil que definiria a China moderna. Vai a pandemia definir os próximos 100 anos de China.