Newsletter 103 (PT)
O China Institute of Contemporary International Relations (CICIR), um dos think tanks mais influentes do país e associado ao Ministério de Segurança do Estado, produziu um relatório atestando que a China está enfrentando um nível de escrutínio internacional semelhante ao da época do “Incidente” da Praça Celestial em 1989. Segundo a agência de notícias Reuters, o relatório também faz menção a um possível episódio de conflito armado com os Estados Unidos — uma conjuntura imaginada apenas para o pior cenário. Apesar de não ser possível averiguar até que ponto a análise reflete a percepção de tomadores de decisão, o estudo mostra o cuidado de uma massa crítica muito próxima ao governo central.
O chefe do banco central chinês, o Banco Popular da China, disse que a recuperação econômica está indo melhor que o esperado. Em texto da Caixin (com paywall), Yi Gang falou que o resultado vai depender também de como o resto do mundo se recupera da pandemia. Ele explicou que o papel do banco central foi de estabilização, com apoio a pequenas e médias empresas, especialmente com liquidez e empréstimos para evitar demissões. Yi também enfatizou que o país considera bem-vinda a entrada no mercado de bancos e seguradoras de fora, que possam ajudar no controle de corrupção e lavagem de dinheiro, e reafirmou a importância da inclusão financeira que vem ocorrendo na China, com papel vital de fintechs.
Um momento interessante, já que a MYbank, banco digital cujo maior acionista é a Ant Financial, decidiu liberar a chocante quantia de 2 trilhões de Renminbi (cerca de 282 bilhões de dólares) em empréstimos para pequenos e médios empreendedores. O MYbank usa algoritmos para calcular em tempo real o risco de empréstimos. É uma aposta alta.
Apesar do otimismo, os números de desemprego são uma fonte de preocupação. O mercado de trabalho do país, que já enfrentava uma tendência de precarização nos últimos anos, foi fortemente atingido pela pandemia do novo coronavírus. Dados oficiais não são precisos. Ainda assim, estimativas conservadoras apontam que pelo menos 80 milhões de chineses estejam atualmente desempregados. O quadro ainda promete piorar na metade do ano, quando mais de 8 milhões de estudantes se formarão no ensino superior e chegarão ao mercado à procura de ocupações. Ciente do problema, Pequim anunciou o lançamento de uma campanha nacional de incentivo à criação de vagas para recém-graduados. A situação daqueles sem alto nível educacional, porém, segue incerta.
Já virou comum ver notícias sobre o impacto no meio ambiente de parar o trânsito e a indústria para ficar em casa. Com a queda nas emissões de gás carbônico, alguns analistas se perguntam se será a chance de impulsionar o uso de energias renováveis e se a recessão pode reorganizar alguns dos planos de redução de emissões. A China já é voz ativa nessas questões, tentando há anos fazer uma transição de matriz energética. Vai rolar uma redução de subsídios, mas, segundo análise do MacroPolo, agora vai ser um teste de fortalecer a resiliência do setor de carros elétricos e de energia solar, e quem sabe de estoque de energia.
Não é novidade que as relações China-Estados Unidos estão no pior momento já visto em décadas, e parte disso se deve à crescente politização quanto à origem do vírus. Se Trump costuma ser o maior expoente, certamente não é o único: Mike Pompeo, Secretário de Estado dos Estados Unidos, desferiu ataques a Pequim por semanas, insistindo em teorias da conspiração de que o novo coronavírus teria sido fabricado em um laboratório de Wuhan. Pompeo surpreendeu mesmo aos mais próximos da administração Trump, visto que um recente relatório produzido pela Five Eyes — a aliança de inteligência da qual os Estados Unidos fazem parte, junto com Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Reino Unido —, já tenha dito que essa teoria é “altamente improvável”.
Apesar de Pompeo ter começado a baixar o tom das acusações nos últimos dias, o dano diplomático foi grande: o Secretário está sendo chamado em Pequim como um gongdi (公敌), ou “inimigo público”, um termo que carrega um grande peso histórico.
Além disso, a guerra no campo da mídia entre os dois países segue. Num novo desenvolvimento, o governo dos EUA vai limitar a duração dos vistos de jornalistas com passaportes da RPC (trabalhando em mídia chinesa ou não, independentemente se estatal). As tretas começaram quando acusações estadunidenses falaram que jornalistas chineses poderiam agir como agentes estatais e não de mídia, caso atuassem em mídia estatal. Em março, o governo chinês retaliou, expulsado jornalistas dos The New York Times, The Washington Post e The Wall Street Journal. Críticas sobre como os EUA advoga a liberdade de imprensa, mas restringe a atuação de mídia chinesa, estão pipocando nas redes sociais e em análises na China.
Tropas chinesas e indianas entraram em confronto na região de Sikkim, localizada no nordeste da Índia e que faz fronteira com a China e o Nepal. Segundo fontes locais, apesar de o conflito ter envolvido mais de 150 soldados, não houve uso de armas de fogo — restringindo-se a empurrões e socos. A região de Sikkim é considerada de alto nível estratégico para os dois países: dá acesso ao corredor Siliguri, é rica em recursos minerais e conta com grande potencial hídrico.
De acordo com relatório divulgado pelo alemão Der Spiegel, Xi Jinping teria pressionado o diretor da Organização Mundial da Saúde a adiar a divulgação de um alerta global sobre o surto do novo coronavírus. A conversa, que teria acontecido por telefone no dia 21 de janeiro entre o líder chinês e Tedros Ghebreyesus, ainda teria incluído pedidos de que a OMS retivesse informações sobre a transmissão de pessoa para pessoa do SARS-CoV-2. Em resposta, a organização negou o conteúdo das acusações, afirmando que o suposto diálogo entre Xi e Tedros nunca teria acontecido e lembrando que a própria China confirmou a transmissão entre humanos do vírus ainda no dia 20 de janeiro.
Um novo caso de espionagem cibernética veio à tona nessa semana após a Check Point Research liberar um relatório apontando ataques de hackers chineses do Naikon group a diversos países do Sudeste Asiático. O Naikon group é conhecido por elaborar mecanismos de espionagem há algum tempo. O que impressionou, desta vez, foi a extensão e a sofisticação do novo método: chamado de Aria-body, a ferramenta vem embutida em documentos de Word e é capaz de de dar total controle da máquina ao hacker, copiar, deletar ou mesmo criar novos documentos. Saiba mais aqui.
Falando em espionagem, um novo relatório do CitizenLab afirma que o WeChat monitora contas registradas internacionalmente (que muita gente achava que eram imunes) para saber o que censurar de conteúdo de questões sensíveis no país, treinando algoritmos do app. O think tank realizou testes, enviando documentos e imagens durante novembro e dezembro em dois grupos, um composto apenas por contas estrangeiras e um com contas registradas em números chineses.
A trágica morte do professor Bing Liu, pesquisador na Universidade de Pittsburgh, nos EUA na semana passada, ganhou as redes sociais chinesas. Liu, nascido na China, estava envolvido em pesquisas avançadas sobre a COVID-19 e foi assassinado por Hao Gu, que teria cometido suicídio logo após o assassinato. No Weibo, diversas teorias da conspiração estão surgindo, sob o argumento de que Liu estaria próximo a descobrir a verdadeira origem do vírus — com muitos internautas afirmando que seria um laboratório estadunidense.
Na China, uma geração de jovens que cresceu olhando para os Estados Unidos como um símbolo de modernidade choca-se com a resposta notavelmente inábil do país norte-americano à pandemia da COVID-19. A inspiração, agora, vem de casa — mesmo que com ressalvas, os chineses mostraram-se expressivamente mais eficientes no esforço de contenção do novo coronavírus do que os estadunidenses. Para alguns, a força do coletivismo e da disciplina na China é responsável pelo sucesso do gigante asiático. Outros, porém, apontam para outra causa: a disposição do povo chinês, mesmo dentre aqueles sem ou com pouca educação formal, de respeitar as recomendações de cientistas.
Mesmo por lá, porém, a luta ainda não está ganha. Seguindo a tendência das últimas semanas, o nordeste chinês segue como ponto focal dos temores de formação de uma segunda onda da pandemia do novo coronavírus no país. Desta vez, Shulan, próximo à fronteira com a Coreia do Norte, foi posta sob lockdown após uma série de novos casos de COVID-19 serem detectados na cidade. E como notícia ruim não anda sozinha, também foi registrado no último sábado (09) o primeiro novo caso da doença em Wuhan desde o início de abril. A situação na cidade marcada pelo nascimento da pandemia, porém, segue estável e não parece preocupar as autoridades.
Fotografia: um repositório online de fotografias de pessoas lendo na China desde 1900.
Nacionalismo: um texto do Made in China Journal discute a questão de uso de desastres na China para incentivar sentimentos nacionalistas. E essa tradução de um ensaio de Zi Zhongyun, que foi diretora do Instituto de Estudos Americanos da Academia Chinesa de Ciências Sociais, sobre as ansiedades patrióticas de 1900 em comparação com as atuais.
Caligrafia: você sabia que a caligrafia é considerada uma das artes chinesas? O historiador Chiang Hsun relembra como caligrafia lembra o seu pai e como essa arte permite criar eulogias com o uso das palavras — na sua forma e no seu conteúdo.
Máscaras secam ao sol, em uma área residencial de Wuhan. Fonte: Sixth Tone (vale a pena ver todas as fotos da matéria).