Newsletter 116 (PT)
Não é um revenge shopping, mas o nível de consumo interno na China tem surpreendido, apesar da queda de vendas no varejo dos últimos meses. Segundo Tai Hui (JP Morgan), o poder de compra tem se mantido estável e a confiança em consumir tem voltado gradualmente com os controles epidêmicos a postos. Há previsões de que o consumo interno melhore ainda mais quando os setores e serviços que foram duramente afetados pela pandemia se adaptem a todo vapor a vender online.
E as boas notícias para a economia chinesa não param por aí: as exportações do país em julho cresceram mais de 7% em comparação ao mesmo período do ano interior. O resultado, que se deve em grande parte à retomada das atividades econômicas ao redor do mundo, contrariou as expectativas de analistas e contribuiu para um superávit comercial chinês de mais de 60 bilhões de dólares estadunidenses no mês passado. Vale notar, porém, que, ao contrário das exportações, as importações durante o mesmo período caíram, sinal de que a recuperação econômica chinesa, apesar de consistente, caminha a passos moderados.
Com o 14.º Plano Quinquenal da China (FYP, em inglês) se aproximando, o Partido Comunista Chinês, pesquisadores, intelectuais e políticos de diferentes níveis de governo acertam os últimos detalhes para o plano que definirá as diretrizes socioeconômicas do país entre os anos 2021 e 2025. Realizado quase ininterruptamente desde 1953, os FYPs norteiam os diferentes graus da administração pública por um período de cinco anos. O 14.º FYP atrai especial atenção agora por dois motivos principais: é o primeiro após a China ter alcançado o objetivo de uma “sociedade moderadamente próspera”, e vem em uma conjuntura de grandes incertezas geopolíticas frente aos Estados Unidos e a um mundo abatido pela pandemia.
A idade de aposentadoria na China é considerada baixa: 60 anos para homens e 55 para mulheres e os planos do governo eram aumentá-la em 2020. A reforma da previdência, que alteraria essa idade, estabelecida durante os anos 1950, ainda não aconteceu. Além disso, a pressão causada pela entrada de pessoas cada vez mais novas no mercado faz com que seu aumento seja improvável, pelo menos no curto prazo. Aqueles na faixa de aposentadoria chegam a 7,3% da força de trabalho do país. Atrasar a reforma coloca (mais) pressão no sistema de segurança social chinês, mas pode funcionar como um estímulo econômico. A reforma deve ficar para 2023. O sistema de aposentadoria e pensões vem mudando bastante nas últimas décadas. O abandono do “iron rice bowl” (expressão para o modelo de pensão e rede de bem-estar social oferecido até o final da década de 70), passando pelas diversas reformas e retrações dos anos 80 e 90, viu uma nova definição nos anos 2000, especialmente no apoio aos trabalhadores rurais.
No dia 4 de agosto, uma explosão no porto de Beirute, capital do Líbano, chocou o mundo. A tragédia veio em um momento em que o país já enfrenta sérios problemas econômicos e uma das suas piores crises. Xi Jinping mandou condolências e prometeu apoio financeiro, além do envio de soldados e médicos chineses que estão no Líbano para atuar na operação de paz da ONU na região (a UNIFIL, da qual o Brasil também participa). Certa ajuda médica já havia sido enviada ao país por Pequim no contexto da COVID-19.
Uma possível “saída chinesa” para a crise libanesa já vinha aparecendo nas notícias, como alternativa a um pedido de empréstimo ao FMI. No início de julho, uma matéria na Foreign Policy apresentou alguns pontos sobre essa questão: sem conseguir alcançar um consenso com os EUA, a China enxerga no Líbano uma chance de fortalecer laços com o Oriente Médio através da Iniciativa Cinturão e Rota. O foco seria o setor energético, bem como um porto ao norte do país. O problema é que a atualidade da crise não pode esperar investimentos que só devem dar resultados nos próximos 5 anos.
Mais um app chinês acaba de entrar na mira dos Estados Unidos e pode estar com os dias contados em solo estadunidense: o WeChat, um super app chinês com 1,2 bilhão de usuários mensais (maioria na China) e que é uma mistura de Facebook, WhatsApp, carteira digital e muito mais. Segundo Washington, o WeChat representa um risco à segurança nacional por coletar dados indiscriminadamente e ser uma porta de acesso ao Partido Comunista Chinês (PCCh). A medida vem em consonância com o projeto, ainda pouco discutido publicamente, do Clean Network que, em linhas gerais, visa criar uma internet “verdadeiramente estadunidense”, ou seja, livre de qualquer participação de empresas de tecnologia chinesas. É a Great Firewall of America surgindo?
Nós até tentamos, mas ultimamente tem sido impossível resumir as hostilidades entre China e Estados Unidos a somente um parágrafo aqui na Shūmiàn. Não bastassem as ordens executivas de Trump mirando no TikTok e no WeChat, Washington deu mais um passo em sua ofensiva contra Pequim ao estabelecer sanções contra Carrie Lam, chefe do Executivo de Hong Kong, assim como contra outros 10 importantes oficiais tanto da Região Administrativa Especial quanto da China continental. De acordo com o Secretário do Tesouro estadunidense Steven Mnuchin, a medida se dá para atingir aqueles que “comprometem a autonomia da Hong Kong”. A medida, é claro, não agradou às autoridades chinesas, que chegaram a classificar as sanções como “irracionais e bárbaras”.
E a afinidade da administração Bolsonaro com Washington dentro desse contexto de tensão entre as duas maiores economias do mundo não é somente artifício retórico. Para além das diversas provocações dos últimos meses, agora o governo brasileiro se esforça para dificultar investimentos chineses no país. Fontes indicam que mudanças a serem adotadas no edital da licitação da retomada da usina nuclear de Angra 3, por exemplo, prejudicariam o projeto apresentado pela chinesa CNNC na competição. Não bastasse isso, um fundo de investimento de 20 bilhões de dólares estadunidenses, criado pela China e pelo Brasil em 2017, também está parado, em grande medida, devido ao desinteresse do governo brasileiro para trabalhar em torno de sua utilização.
Falando em Brasil, o embaixador chinês por terras brasileiras, Yang Wanming, escreveu na Folha sobre a participação da Huawei no leilão do 5G no Brasil. Ele critica a pressão estadunidense contra a empresa, diz que a China não vai interferir nas decisões, mas pede consciência e julgamento sensato sobre o desenvolvimento brasileiro.
Em mais um artigo que viralizou na internet chinesa, Zheng Yefu — sociólogo aposentado da prestigiosa Universidade de Pequim — defende que a obsessão do PCCh por estabilidade social está, na verdade, contribuindo para a desarmonia da sociedade. Zheng argumenta que a fixação acarreta altos custos culturais e financeiros insustentáveis ao longo prazo, e que nem mesmo os filhos dos todo-poderosos do Partido estão comprando mais essa ideia: pertencentes a famílias que compõem a elite política do país, as novas gerações estudam e moram em outros países, atraídos por ambientes com mais liberdade, segundo o sociólogo.
Há quem diga, no entanto, que a escolha por morar fora é mais por sobrevivência do que por liberdade em si: ainda que se ter laços familiares com os grandes nomes do PCCh abra portas, carregar o sobrenome dentro do Partido e perder uma disputa de poder pode ser o fim do legado de muitas gerações.
Em 1993, Zhang Yuhuan foi preso após a polícia encontrar os corpos de duas crianças que viviam perto de sua casa na província de Jiangxi, no leste chinês. Condenado à morte com pena suspensa, passou 26 anos na prisão até ser inocentado e liberado na última semana. Em entrevista gravada após sua libertação, Zhang, que à época chegou a confessar o crime, afirmou que foi torturado pela polícia por dias após ser detido. Seu corpo ainda teria cicatrizes das mordidas de cachorros usados contra ele em sessões interrogatórias violentas. O caso ganhou atenção nacional na China, dando força ao debate quanto à necessidade de reformas que corrijam as profundas falhas do sistema de justiça criminal do país — acometido, dentre outros fatores, pela falta de um devido processo legal, além de por pressões políticas e incentivos para que tribunais condenem réus em casos importantes a despeito de provas contraditórias.
A possível proibição do WeChat nos EUA está deixando diversas famílias chinesas preocupadas em não conseguirem manter o contato entre si. O WeChat, um dos poucos aplicativo que consegue ser uma ponte através da Great Firewall of China, é a principal ponte de comunicação de muita gente com a sua terra natal e parentes mais velhos — ou uma maneira de resgatar laços com suas origens, inclusive comercialmente. Agora, muitos pensam em alternativas, como o FaceTime (disponível em iPhones) e o Signal. O assunto, obviamente, ganhou destaque nas redes sociais chinesas, tornando-se o mais comentado no Weibo, com sugestões de que a retaliação chinesa deveria vir na forma de um boicote à Apple.
A BBC publicou depoimento do modelo uigur Merdan Ghappar, preso desde 2018. Ele residia no sul da China, onde foi preso sob acusações de estar vendendo maconha. Após mais de 1 ano preso em Guangdong, foi enviado de volta para um campo de detenção em Xinjiang — região que tinha deixado em 2009. No seu relato, enviado clandestinamente para a família (que reside fora da China) e que inclui vídeo e mensagens do WeChat, Merdan relata a sua trágica experiência na prisão com detalhes sobre superlotação e tratamento cruel de presos.
Nostalgia: no dia 08/08/2008, o mundo parou para prestigiar a inesquecível Cerimônia de Abertura das Olimpíadas em Pequim. Você pode rever o evento completo aqui e ler uma análise sobre o soft power chinês nos esportes.
Tempero: uma lista de 10 ingredientes essenciais para se ter na cozinha, caso você queira fazer pratos da culinária chinesa.
Um pouco mais acadêmico: um artigo recém lançado comparando as compras públicas (feitas pelo governo) na área de inovação no Brasil e na China.
Masculinidade: já que ontem foi Dia dos Pais no Brasil, vale ler um pouco sobre diferentes representações de masculinidade na cultura pop chinesa.
Fotografia: vivendo mais de 30 anos no país que adotou como sua casa, o fotógrafo escocês Bruce Connolly registrou as mudanças dramáticas experimentadas pela China em sua história moderna.