Edição Extra – A grande reabertura da China
Duas situações levaram a essa edição especial: o aumento drástico dos casos de Covid-19 na China e o anúncio de reabertura das suas fronteiras — sem necessidade de quarentena. O primeiro fato não surpreende tanto quem nos acompanha. O segundo pegou o mundo de surpresa.
Depois de quase três anos, o gigante se abriu. Desde que a China decidiu fechar as fronteiras, em março de 2020, para tentar conter o desconhecido e assustador novo coronavírus, muita água rolou. Não faltaram apostas sobre quando se daria a reabertura e ela finalmente virá a partir de 8 de janeiro de 2023, duas semanas antes da celebração do Ano Novo Lunar. Essa mudança é possível por conta da redução do grau de gerenciamento da doença, do nível A para o B, o que significa que a partir de janeiro também as autoridades locais perdem um pouco do seu poder de fazer lockdowns e quarentenas. De acordo com o anúncio, passaportes chineses e vistos para estrangeiros voltam a ser emitidos com normalidade.
Com as fronteiras abertas, as expectativas são de que chineses voltem a fazer o que o resto do mundo já vem fazendo: viajar. Segundo o Global Times, as buscas por destinos internacionais em sites de viagens aumentaram desde o anúncio de reabertura. No entanto, a recepção a esses turistas pode não ser efusiva – diversos países, como Estados Unidos, Japão, Malásia e Índia já anunciaram que devem impor condições específicas para quem chega da China. Na direção contrária, Hong Kong está se preparando ansiosamente para recebê-los, como conta o South China Morning Post, abrindo mão de quase todas as medidas de prevenção à Covid-19. Junto com Macau, a região administrativa especial deve receber muitos compatriotas em busca das vacinas que não são disponibilizadas no continente.
Apesar de trazer felicidade para muita gente, a reabertura acontece em um momento preocupante, com explosão de relatos de aumento de casos — e um apagão de dados. Na última quarta-feira (21), a Organização Mundial da Saúde já expressava sua preocupação com a dificuldade chinesa em divulgar dados oficiais. Sem as realizações dos testes em massa, as autoridades decidiram no domingo (25) parar de divulgar novos casos, depois de já terem suspendido o anúncio de casos assintomáticos no dia 14 deste mês. Assim, o número de pessoas infectadas de fato é motivo de especulação. Pesa nisso, a decisão do governo de, quase da noite pro dia, desmontar toda a estrutura de testagem em massa que vigorou ao longo da política de Covid zero. Com testes caseiros apenas, fica difícil ter um número preciso. O Financial Times relata que, em uma reunião fechada do Partido, um membro do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças teria falado em 250 milhões de casos estimados nos primeiros 20 dias de dezembro.
O que se pode ver de fato são os inúmeros relatos de lotação de hospitais, necrotérios e crematórios, como contam esta matéria da Associated Press (AP), esta investigação do Washington Post e esta reportagem do New York Times. Algumas cidades informam dificuldades com falta de equipamentos e equipes contaminadas, mostrando a precariedade do sistema público de saúde da China, que parece não ter sido preparado ao longo dos últimos três anos para quando a estratégia de Covid zero fosse abandonada. O jornalista da AP Dake Kang está em Pequim e tem ido diariamente às unidades de saúde desde o dia 24 para registrar a situação de lotação neste fio. Segundo declaração do ministério das relações exteriores nesta quarta-feira (28), a capital já teria atingido seu pico de infecções para a primeira onda e a normalidade está sendo restaurada. Um documento oficial vazado estima que metade da população da cidade, ou 22 milhões de pessoas, teria sido infectada.
Além da disseminação da doença, o número de mortes também pode estar sofrendo com subnotificação. As autoridades divulgaram apenas oito óbitos referentes aos dias 1 a 26 de dezembro. No entanto, há listas circulando de acadêmicos e celebridades que faleceram desde a reabertura, como o designer do mascote da Olimpíada de Verão de 2008, Wu Guanying. A sua morte, causada por uma “gripe severa”, não foi divulgada como resultado da Covid-19. Uma explicação para a subnotificação é que o governo decidiu na semana passada (21) considerar mortes causadas pela infecção apenas aquelas diretamente comprovadas, não as que incluem comorbidades — ao contrário do que é feito no Brasil e nos EUA, por exemplo. Esta matéria da DW afirma que uma empresa britânica de dados estima 5 mil mortes por dia. As mortes acontecem sobretudo porque, apesar de 90% da população chinesa ter sido vacinada, segundo dados do governo, boa parte da população mais velha não tomou as doses de reforço. O podcast Café da Manhã da Folha conta um pouco sobre isso.
Como serão as próximas semanas? A partir de 8 de janeiro, quando as fronteiras estarão reabertas, o governo chinês terá duas semanas para controlar o ritmo de circulação do coronavírus a tempo das famosas e massivas viagens para o Ano Novo Lunar. Estas primeiras ondas de contaminação ocorrem no inverno, data em que as infecções de doenças respiratórias, como a Covid-19, se espalham com mais voracidade. Nesta semana, Xi Jinping pediu que o governo providenciasse medidas mais eficazes para conter o surto. Embora clínicas temporárias venham substituindo espaços de testagem para tratar pacientes com sintomas leves e prescrever remédios (vários em falta e com a produção despreparada para suprir a demanda), muito ainda precisa ser feito. Ainda que os efeitos colaterais possam ser questionas, a China conseguiu por três anos fazer uma contenção bem-sucedida de uma doença que já causou mais de seis milhões de mortes pelo mundo e enfrenta pela primeira vez cenários semelhantes àqueles que outros países já viram desde 2020. Se esse adiamento trará alguma vantagem, 2023 deve revelar. Há uma preocupação, por parte de outros países, que as infecções em massa na China, combinadas com a abertura de fronteiras, possam resultar no surgimento de novas variantes da doença.