Edição 265 – Entre enchentes e terremoto, tragédias climáticas atingem a China
As escolhas políticas sobre eventos climáticos extremos ficaram mais evidentes com a passagem do tufão Doksuri pela China no final de julho. Em Pequim, chuvas que não se via há mais de 140 anos trouxeram, em menos de cinco dias, mais água do que ao longo de todo 2022; na província de Hebei, a chuva de dois anos caiu em apenas três dias. O volume inesperado impactou a bacia do rio Hai, um sistema de drenagem natural que passa pelo Norte do país, incluindo a capital, Hebei e a cidade de Tianjin. Para escoar os quase dois bilhões de metros cúbicos de água e poupar as duas cidades, no dia 31 de julho, Hebei desalojou temporariamente mais de 850 mil moradores – um sacrifício declarado do governo local, e que foi duramente criticado. Até o momento, o número de vítimas fatais da enchente chega a 21, com outros 26 desaparecidos.
As críticas foram além do governo de Hebei – afinal, apesar dos números históricos registrados neste ano, inundações no Norte do país durante o verão são recorrentes. Nas redes sociais, sobrou deboche para a “visão de Xi Jinping” sobre o gerenciamento de recursos hídricos – assunto de um relatório lançado em meados de julho. Quando o governo age, é possível reduzir o impacto de desastres naturais, como ficou claro na mesma semana: em Pingyuan, na província de Shandong, um terremoto de magnitude 5.5, o maior em uma década, causou o desabamento de 126 casas em 31 de julho. Mas graças a um sistema de notificação nacional, que alertou moradores segundos antes do abalo, o número de pessoas feridas foi limitado a 21. Medidas de contenção não precisam nem mesmo de tecnologias modernas: como explicou a Xinhua, um engenhoso sistema da dinastia Ming mantém a Cidade Proibida protegida de enchentes.
Dados maquiados. Não bastasse a taxa recorde de desemprego de jovens atingida em junho, surgiram denúncias de que faculdades estariam adulterando esses dados — e a situação estaria significativamente pior do que se supunha. Em medida anunciada na semana passada, o Ministério da Educação criou equipes especiais de inspeção para averiguar essas denúncias ao redor do país e garantir a autenticidade de dados sobre a taxa de desemprego de jovens com graduação. Faculdades chinesas estariam forçando recém-graduados a mentirem sobre sua situação empregatícia ou a assinarem contratos de trabalho espúrios com a própria instituição para manipular dados a seu favor. Segundo relatou o South China Morning Post, em algumas instâncias, institutos de ensino superior estariam condicionando a entrega de diplomas à obtenção de um emprego. Vale notar que a taxa de empregabilidade de egressos é determinante para garantir financiamento ou mesmo a continuidade de programas de pós-graduação na China. Além das inspeções, o governo também se comprometeu a priorizar a criação de vagas de emprego para jovens diplomados no segundo semestre de 2023.
China quer limitar o uso de internet por menores. Depois dos jogos de videogame, chegou a hora de o PCCh lançar diretrizes para o controle do uso de celulares e da internet por menores de idade no país. O pacote de diretrizes foi lançado na última quarta (2) e foi cuidadosamente detalhado pelo China Law Translate. Será necessário logar no modo “menor” ou “maior” quando cada usuário acessa os dispositivos móveis, e cada modo tem restrições distintas, semelhante ao que acontece com alguns canais de streaming, por exemplo. A legislação visa controlar o conteúdo e também o tempo que cada menor de idade passa na internet. A Bloomberg publicou uma reportagem sobre como isso deve impactar os negócios de empresas como a Tencent e a ByteDance.
Comprar drones chineses ficou mais difícil. Na semana passada, a China apertou as restrições à exportação de veículos aéreos não tripulados de uso civil que podem ser usados em conflitos armados, sobretudo aqueles que tenham autonomia maior do que 30 minutos e sejam capazes de arremessar objetos. A nova regulação também ressalta que mesmo drones que não preenchem os novos critérios não devem ser exportados, caso seus fabricantes saibam que seus produtos estejam sendo usados militarmente. Segundo comunicado do Ministério do Comércio, o governo teme que as aeronaves estejam sendo convertidas para uso militar — especialmente após relatos de drones chineses de uso civil estarem sendo usados na guerra da Ucrânia. Conforme apurou a AP, a medida pode ser vista como um passo para reforçar a oficial neutralidade de Pequim ante o conflito, que foi tema de nova conferência de paz (sem a presença de Moscou) na Arábia Saudita. Nesse quesito, não deixe de ler a análise de Bernardo Mariani da London School of Economics sobre os esforços chineses para negociar a paz no leste europeu.
Arrivederci? Pode ser o fim da participação da Itália na Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês). Um dos argumentos para a saída é econômico: segundo o gabinete de Giorgia Meloni, atual primeira ministra italiana, o país pouco se beneficiou com o novo acordo, que teria acentuado o desequilíbrio da balança comercial bilateral, com Pequim tendo um aumento de mais de 20 bilhões de euros em exportações para Roma. Essa informação, repercutida em meios como o The Diplomat, CNN e NBC News, é contestada pelo governo chinês, com repercussão no Global Times, que nota que a BRI teria ajudado a expandir as exportações de empresas italianas na China. Como apura Takayuki Tanaka para a Nikkei Asia, Roma tem até dezembro de 2023 para decidir se vai ou racha na iniciativa, que comemora dez anos de existência neste ano. David Sacks, especialista residente do Council on Foreign Relations, debate o contexto econômico que levou a Itália a optar por fazer parte do programa em 2019 e as pressões geopolíticas atuais que sinalizam a sua saída. Já Alexander Smith explica na NBC News algumas características da nova política externa italiana, que se volta cada vez mais para Washington. A adesão de um país do G7 simbolizou um importante marco da expansão da BRI.
BRICS bombado? Não é de hoje que a ideia de aumentar o bloco está sendo ventilada, mas matéria publicada esta semana pela Folha de S.Paulo mostra que nem mesmo dentro do governo Lula há consenso sobre o tema. O texto fala sobre a ideia do presidente de incluir ao bloco países latino-americanos como Venezuela e Argentina. Já o Itamaraty, órgão responsável por elaborar a política externa do país, vê a ideia com desconfiança, por medo de perder espaço para a China. Na semana passada, mostramos que o clima no BRICS não anda lá muito bom.
Pega o chazinho e vem ler. Acaba de ser lançado no Brasil o livro A estrela vermelha brilha sobre a China. Inédita por aqui, a obra publicada em 1936 é considerada fundamental na construção de Mao como uma celebridade política, tanto na China quanto internacionalmente. Seu autor, Edgar Snow, é lembrado em uma lápide na universidade de Pequim como “um amigo americano do povo chinês”, como conta a Quatro Cinco Um – um carinho reservado a poucos escritores, mesmo os compatriotas. Um artigo recente da The New York Times Magazine explora, a partir do relato do romancista exilado Hao Qun, como escritores, jornalistas e acadêmicos navegaram as mudanças na liberdade de expressão chinesa nas últimas décadas: de um lado, as influências de Deng Xiaoping, Jiang Zemin e a internet – de outro, Xi Jinping e o Grande Firewall.
Falando em literatura e dissidência, em 28 de agosto nosso Clube do Livro de Literatura Chinesa vai discutir Ervas Daninhas, de Lu Xun. Traduzida por Caleb Guerra, a obra escrita entre 1924 e 1926 tinha a ambição de renovar o panorama da arte na China, reformulando os significados de literatura em chinês clássico e incorporando palavras e conceitos emprestados do Ocidente. A discussão promete ser bem especial. Mas se está muito em cima da hora para ler todo o livro, sobra tempo para encomendar e ler The Impossible City, de Karen Cheung, leitura de setembro. A autora é parte do êxodo político da cidade, como conta em um podcast que já recomendamos por aqui. Para ajudar a imaginar os lugares descritos por Karen, vale conferir os registros do fotógrafo Wong Chung-Wai, outro honconguense exilado.
Mares mais protegidos. Imagina poder visualizar correntes oceânicas em 3D, temperatura média da água e oxigênio, salinidade, e outros indicadores importantes para a preservação da biodiversidade marinha. É essa a ideia por trás do WavyOcean, uma plataforma digital criada por pesquisadores da Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong e disponível em chinês simplificado e tradicional, além do inglês. A plataforma tem uma resolução de 50 quilômetros e cobre apenas a região costeira Guangdong-Hong Kong e Macau, uma das mais poluídas do país. Como discute You Xiaoying para o China Dialogue Ocean, tecnologias como a WavyOcean estão alinhadas com macroestratégias de desenvolvimento e proteção marinha, que podem ser utilizadas tanto para tornar a indústria pesqueira e marítima mais eficiente, quanto na preservação da biodiversidade marinha e esforços de conservação.
Imperdível: este texto de Daniel Roque para a BBC Brasil analisa a história de preconceito e fascínio que a China gera nos brasileiros.
Interativo: o projeto The China Global South Project criou um mapa interativo sobre a produção de cobre e cobalto na República Democrática do Congo — aliás, pauta que já apareceu por aqui.
Imaginário: muito azul? Número flutuando? Mãos robóticas? Cérebros estilizados? Este artigo acadêmico de Gabriele de Seta e Anya Schchetvina analisa o uso de imagens por empresas de IA chinesas para representar sua visão de futuro tecnológico.
Urso: natural ou fake? Um zoológico na cidade de Hangzhou teve que vir a público esclarecer que não, seu urso bípede não é um humano fantasiado. Vale ver as imagens pra entender a fofoca.
Documentário: uma nova série documental da Tencent chamada Chasing the Tide mostra a vida de empreendedores chineses no Vietnã e as tentativas de implementar o uso de livestreaming para vendas. Somente em mandarim.
O filme chinês 小城之春 ou Spring in a Small Town (1948), dirigido por Mu Fei, merece o seu tempo: em 2005, ele foi votado o melhor longa-metragem já feito no país. Esta matéria do Sixth Tone conta sobre a atenção que a produção vem recebendo. Você pode assistir todo ele no YouTube, com legendas em inglês, cortesia do projeto Modern Chinese Cultural Studies, bem como as duas palestras do professor Christopher Rea (da Universidade de British Columbia).