Edição 314 – Diário de Li Rui, crítico do Partido Comunista Chinês, é disputado nos tribunais dos Estados Unidos
É comum ouvir que a China lidera a transição energética no mundo devido aos incentivos fiscais que dá para indústrias solares e eólicas, associado a mão de obra barata do país. E é por isso que o artigo de Anders Hove vale tanto a pena a leitura: fugindo desse lugar comum, Hove discute que o que fez o país asiático liderar essa conversa foi uma combinação de clusters industriais e políticas públicas consistentes. No caso dos clusters, ao invés de buscar sempre vantagens comparativas entre as diversas regiões do país – como localizações mais baratas, ainda que distantes, e dispersar a produção de itens da cadeira produtiva – ou mesmo exportar a produção de componentes específicos para outros países, a China optou por centralizar e verticalizar em uma única região ou cidade, criando verdadeiros clusters verdes. Isso ajudou a reduzir custos de transporte, manufatura e até mesmo agilizar a produção dos componentes. Países como Estados Unidos e a Europa tendem a fazer o inverso: jogam para o offshore alguns elementos da cadeia produtiva para reduzir custos.
A estratégia de autossuficiência tecnológica da China foi tema de uma análise recente no The New York Times. Com foco em setores cruciais como semicondutores e energia renovável, nos últimos dez anos, a China triplicou seus gastos com pesquisa e desenvolvimento, alcançando o segundo lugar mundial, atrás apenas dos Estados Unidos. Pesquisadores chineses lideram em 52 das 64 tecnologias críticas globais, com destaque para tecnologias de baterias – 65,5% dos artigos mais citados vêm da China.
O investimento intenso no setor tem se refletido em uma vantagem competitiva significativa, com domínio de empresas chinesas como CATL e BYD. Recentemente, a liderança do Partido Comunista destacou a educação científica como uma prioridade econômica central, comprometendo-se a formar talentos de ponta nas áreas de ciências e engenharia, que já representam a maioria dos estudantes de graduação e doutorado no país.
Documento histórico. Iniciou na segunda (19) o julgamento de uma longa disputa jurídica pelo diário de Li Rui, então membro do Partido Comunista da China, cobrindo os anos de 1946 até 2018 (ele faleceu em 2019). A matéria do The Guardian conta a história dos registros de Li, que se juntou ao PCCh em 1937, virou secretário de Mao Zedong, foi expulso do Partido ao criticar o chefe em 1959 e ficou preso por quase 20 anos. Ele foi readmitido após a morte do líder chinês com um papel proeminente – mas saiu dos holofotes novamente na década de 1980 e seguiu criticando o Mao e depois o governo Xi Jinping. Li, sempre comunista, virou um vocal defensor de reformas políticas, liberdade de imprensa e de uma China socialista, mas democrática.
Com uma vida dessas, não surpreende que o diário virou alvo de disputa após a morte – e acabou sendo doado para o Instituto Hoover da Universidade de Stanford, na Califórnia, pela filha de Li (uma crítica do Partido) em 2019. No mesmo ano, a viúva Zhang Yuzhen decidiu questionar, sob o argumento que o diário também era um item pessoal dela, e ganhou um processo em Pequim. Um novo processo iniciou nos Estados Unidos: Stanford contra Zhang. A universidade estadunidense diz que a viúva está sendo financiada pelo PCCh (afinal, o processo é caro!) e que estaria querendo reaver um documento crítico ao Partido.
De olho no vírus Mpox, também conhecido como a varíola do macaco, China vai começar a monitorar a entrada de bens e pessoas pelos próximos seis meses como precaução, relata a Reuters. A medida vale para fluxos oriundos de localidades que já registraram a doença, como a República Democrática do Congo. Declarada como emergência de saúde global pela Organização Mundial da Saúde, o vírus Mpox já está presente na Ásia, com o primeiro caso registrado na Tailândia recentemente.
A primeira agência independente de checagem de fatos abriu suas portas na China em 2020. A International Journalists’ Network publicou um texto contando da criação, do funcionamento e dos desafios da China Fact Check. Assinado pelo fundador Wei Xing, ex-editor-chefe na Sixth Tone, o artigo narra o processo de voluntariado com estudantes e jornalistas veteranos. O China Fact Check trabalha também com equipe ao redor do mundo, permitindo que alguém esteja online para fazer verificações 24h por dia. A guerra na Ucrânia, por exemplo, ampliou a equipe tanto que passaram a contratar também médicos e outros especialistas para apoiar na checagem. No ano passado, eles publicaram um guia em mandarim de como fazer checagem de fatos – o primeiro do tipo.
Isso que significa diversificar a carteira de investimentos? A Kweichow Moutai, conhecida por seu tradicional baijiu de sabor “molho de soja”, surpreendeu ao investir em uma startup de design de semicondutores, a Shanghai SmartLogic. Embora o investimento seja modesto para os padrões da indústria, ele reflete uma tendência maior entre as estatais chinesas (a Kweichow tem capital misto), que estão cada vez mais direcionando recursos para setores de alta tecnologia, alinhando-se às diretrizes governamentais que priorizam a autossuficiência tecnológica. O investimento da Moutai em semicondutores também levanta questões sobre o papel de indústrias “indesejáveis”, como bebidas alcoólicas, em uma economia que está se concentrando cada vez mais em prioridades estratégicas. A iniciativa pode ser vista como uma tentativa de utilizar os lucros de setores tradicionais para financiar o avanço de indústrias tecnológicas vitais para o futuro da China.
O rei chegou. Não foi só na pré-venda que o jogo Black Myth Wukong quebrou recordes: lançado na última terça-feira (20), ele já se tornou o título single-player com o maior número de jogadores simultâneos na plataforma Steam, com 2,2 milhões de pessoas. Esse sucesso anima especulações sobre o futuro da indústria chinesa de games pelo mundo, mesmo com as acusações de misoginia contra a desenvolvedora Game Science – que chegou a instruir alguns criadores de conteúdo a não incluir “discursos negativos” e evitar certas palavras-chave em suas resenhas, o que resultou em uma enxurrada de influenciadores fazendo stream do jogo sob títulos com essas palavras, como “Covid-19 isolamento Taiwan (é um país de verdade) propaganda feminista”. Apesar disso, o sucesso do jogo parece contribuir para o soft power chinês, despertando o interesse do restante do mundo pelo romance clássico Jornada ao Oeste, no qual é inspirado. Na China, o título levou a uma explosão de vendas do console PS5 e já movimenta o turismo doméstico. Tudo isso em menos de uma semana.
Clube do Livro: dia 26 (segunda-feira), nos encontraremos para o nosso Clube de literatura chinesa. A discussão será sobre o volume II dos quadrinhos Uma Vida Chinesa. A partir das 20h, pelo Google Meets.
Leitura da semana: vale reservar um tempo (e um cafezinho) para ler Lynn T. White III, professor de Política e Relações Internacionais da Universidade de Princeton, sobre a verdadeira origem das reformas econômicas da China nos anos 1970. Lynn se volta para o campo e argumenta que foi a mecanização da agricultura, mais do que as reformas de Deng Xiaoping de 1978, que deram início ao rápido crescimento econômico do país à época.
Língua: Uma discussão tem sido levantada sobre como a hegemonia do mandarim na China é imposta sobre outras línguas e dialetos chineses, como o cantonês, dentro de uma ideia de supremacia linguística. Vale conferir este artigo no The People’s Map.
Mais um: se você ainda luta para equilibrar tantas contas de streaming, prepare-se, porque a gigante chinesa iQiyi chegou ao Brasil com mais de 8 mil filmes e séries asiáticos (não apenas chineses). Os planos são pagos, mas alguns materiais estão disponíveis de forma gratuita.
Painel: a rede Observa China organizou um evento online para discutir os 50 anos da relação entre Brasil e China, comemorados na semana passada. Está disponível no YouTube.
O sinólogo Frank Dikötter, do Instituto Hoover da Universidade de Stanford, explica a importância e riqueza do diário de Li Hui para entender a China moderna e o Partido Comunista Chinês desde os eventos da Praça Tiananmen de 1989.