Hong Kong fragmentada: o dilema da autonomia

Recentes protestos na cidade demonstram dificuldades no processo de integração com a China continental

Manifestantes tomam as ruas de Hong Kong

Por Gabriel Fragoso

A Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK) tem sido palco de sucessivos protestos desde o início de junho em resposta às emendas legislativas que permitiriam extradições para a China continental. A proposta de alteração na lei de Hong Kong para Infratores Fugitivos e Assistência Legal Mútua em Assuntos Penais disponível na íntegra na página oficial do Conselho Legislativo de Hong Kong surgiu no contexto de um caso de feminicídio de grande repercussão, ocorrido em Taiwan. O assassino, natural de Hong Kong, não foi extraditado por falta de acordo formal entre as partes e acabou sendo condenado a 29 meses de prisão por delitos menores relacionados ao crime. 

A chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, citou o assassinato ao propor uma legislação que permitiria a extradição de suspeitos de certas ofensas para jurisdições com as quais Hong Kong ainda não possui um acordo formal de extradição. O plano, que cobre Taiwan,  também incluiu a China continental. 

Manifestantes e associações da sociedade civil alegam que a lei de extradição resultaria em perda de autonomia da RAEHK, permitindo que oponentes políticos de Pequim fossem julgados na China continental. Já o governo de Hong Kong defende que a proposta visa lidar com casos específicos, a fim de colaborar com a transferência de suspeitos fugitivos da RAEHK para outros países e regiões, e vice-versa. 

“[…] a reintegração de Hong Kong, realizada sob o princípio de um país, ‘dois sistemas’, buscou a preservação de seus sistemas político, econômico e administrativo com alto grau de autonomia, exceto em assuntos de defesa e relações exteriores”

A garantia de atuação independente para o Judiciário de Hong Kong foi peça fundamental para a devolução do território, colônia ultramarina do Reino Unido desde a década de 1840, à República Popular da China em 1997. Dessa forma, a reintegração de Hong Kong, realizada sob o princípio de “um país, dois sistemas”, buscou a preservação de seus sistemas político, econômico e administrativo com alto grau de autonomia, exceto em assuntos de defesa e relações exteriores, por um período de 50 anos a partir do retorno à soberania de Pequim. 

Após manifestações que reuniram milhões de pessoas, Lam se viu obrigada a reconsiderar e declarar a legislação suspensa já na segunda metade de junho. Apesar do recuo, os protestos continuaram a ganhar força e contornos mais radicais, reunindo uma miscelânea de grupos e demandas. Pedidos por mais liberdades civis, pela renúncia de Lam e pela independência de Hong Kong  se misturaram em meio às manifestações e greves puxadas por estudantes, trabalhadores, independentistas, imigrantes e socialistas

Muitos dos protestos foram marcados por violência, principalmente devido à brutalidade das forças policiais de Hong Kong, somada aos ataques perpetrados por grupos organizados na noite de 22 de julho e o ferimento de alguns policiais. Houve casos de hostilidade por parte dos manifestantes, sendo a invasão e a depredação do Conselho Legislativo as ocorrências mais notáveis. Imagens das paredes pichadas e da bandeira de Hong Kong colonial exposta foram amplamente divulgadas e acentuaram as divisões no interior do movimento.

A crise política de Hong Kong não passou despercebida pela comunidade internacional, tendo sido comentada por autoridades diplomáticas do Canadá, Austrália, Reino Unido e Estados Unidos. O secretário de Estado britânico, Jeremy Hunt, afirmou que haverá graves consequências caso a China não respeite a autonomia de Hong Kong, garantida pela Declaração Conjunta Sino-Britânica de 1984. A porta-voz do Departamento de Estado estadunidense, Morgan Ortagus, comunicou “grave preocupação” e citou a “erosão contínua da estrutura ‘um país, dois sistemas’”. Ambas as declarações foram refutadas pelo Ministério das Relações Exteriores da China, que alegou “não permitir em absoluto que as forças externas interfiram nos assuntos de Hong Kong ou perturbem a região administrativa especial”. Já o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, curiosamente divergiu da linha oficial do Departamento de Estado, tratando os protestos como “tumultos” e afirmando se tratar de uma questão estrita entre China e Hong Kong. 

Com os protestos entrando na nona semana, Hong Kong se depara com um impasse. Carrie Lam cedeu ao suspender o projeto de lei, mas recusa-se a renunciar. De fato, uma mudança no comando do Executivo da RAEHK, resultante da pressão dos manifestantes, poderia minar a autoridade local e a falta de um substituto claro abriria margem para divisões no campo pró-governo. Pequim também passa por um dilema: apoia o governo de Lam e deseja o retorno da ordem, mas evita o envio de tropas sob o risco de dano à imagem e maiores reações internacionais. Não parece haver saídas fáceis para a crise. A única certeza momentânea é de que a autonomia de Hong Kong seguirá sendo objeto de intensas disputas e debates. 

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