Newsletter 095 (PT)
Mais indícios apontam que os primeiros casos do COVID-19 apareceram muito mais cedo do que divulgado, com o primeiro registro já no dia 17 de novembro em Wuhan. Apesar de não se tratar do paciente zero, o acontecimento corrobora as críticas de que os governos local e central estavam cientes da situação já em 2019, e de que não apenas a China, mas alguns países perderam a janela para implementar políticas de saúde pública adequadas mais cedo do que se imaginava, como é o caso explícito da Itália.
Na mesma linha, vale ler sobre a médica diretora do hospital central de Wuhan, Ai Fen, relatando os primeiros casos da doença e os passos para encobrir o que estava acontecendo na cidade.
Com o número de novos casos em plena queda e o fechamento de instalações médicas emergenciais em Wuhan, a China parece estar vencendo a batalha contra o COVID-19. Recuperar a economia chinesa dos estragos provocados pelo vírus, entretanto, não será fácil. Por todo o país, fábricas permanecem expressivamente aquém de sua capacidade operacional enquanto milhões de trabalhadores seguem proibidos de retornar às suas cidades. Além disso, uma recuperação por inteiro pode requerer superação a nível mundial do novo coronavírus: a demanda internacional por produtos chineses tende a cair conforme a epidemia se espalha pelo globo e afeta a saúde econômica dos parceiros comerciais de Pequim.
No mês passado, Ren Zhiqiang, um influente investidor no mercado imobiliário chinês, referiu-se indiretamente a Xi Jinping como um palhaço com sede de poder. O comentário, feito sob um contexto de crítica à resposta das autoridades centrais chinesas à epidemia do COVID-19, parece ter custado caro: de acordo com amigos próximos, Ren — que, vale notar, também é membro do Partido Comunista Chinês — está desaparecido há dias. Apesar da falta de confirmação oficial, o episódio já é tratado como o mais novo desenvolvimento do esforço de Pequim para conter críticas à administração chinesa quanto à crise do novo coronavírus.
O famoso escritor Peter Hessler escreveu para o The New Yorker sobre como o Peace Corps, organização voluntária estadunidense, encerrou suas atividades na China — aparentemente como resultado da disputa política entre EUA e China. Hessler foi para a China nos anos 90 ensinar inglês nos primeiros anos do programa do Peace Corps no país e posteriormente publicou quatro livros sobre seu tempo pelas terras chinesas, incluindo River Town: Two Years on the Yangtze sobre essa experiência em especial.
O que o novo coronavírus pode significar para a política externa da China? Paul Haenle, do Carnegie Endowment for International Peace, escreveu sobre a questão e o que ela pode significar para a China — e por tabela para os EUA — frente à pandemia, especialmente com o acordo para finalizar a guerra comercial na balança. Já é possível ver resultados positivos sobre a postura chinesa, com o envio de médicos e respiradores para a Itália, que já se encontra numa crise pior que a China e está recebendo pouca ajuda da União Europeia, e para o Irã. Quando a crise acabar, de quem esses países vão lembrar?
Os últimos acontecimentos nas relações entre Estados Unidos e China ganharam mais um episódio. O motivo foi o tuíte polêmico de um oficial chinês acusando abertamente o exército estadunidense de ser o grande responsável por trás da pandemia do COVID-19. Zhao Lijian, um dos porta-vozes do Ministério das Relações Exteriores, falou para os seus mais de 284 mil seguidores que “deve ser o exército dos EUA que trouxe a epidemia para Wuhan […] Sejam transparentes! Tornem público os seus dados! Os EUA nos devem uma explicação!”. No Brasil, as teorias da conspiração também andam soltas, mas responsabilizando os “comunistas” pela pandemia, é claro.
A assinatura da primeira fase do acordo que inicia o processo de resolução da guerra comercial sino-estadunidense trouxe consigo apreensão quanto a mudanças bruscas nos padrões de fornecimento de commodities agrícolas à China (que, a partir de agora, deve passar a comprar mais dos Estados Unidos em detrimento de outros países). Nem todos, porém, compartilham de tal preocupação: mesmo com as vantagens aos produtos estadunidenses estabelecidas pelo acordo, a diversificação da oferta à demanda agropecuária chinesa deve se manter. Entre os principais beneficiados, figuram países competitivos do setor, como Brasil e Argentina.
O famoso escritor chinês Yan Lianke fez um discurso sobre o poder da memória em tempos de COVID-19, e a importância de registros, de escritores e escritoras, para a turma da sua primeira aula online do semestre na Universidade de Hong Kong de Ciência e Tecnologia.
Numa fala emocionante, Yan disse “nos tempos passados e presentes das nossas vidas, por que as tragédias e desastres sempre caem sobre indivíduos, famílias, sociedades, eras, ou países, um depois do outro? E por que as catástrofes da história são sempre pagas pelas vidas de dezenas de milhares de pessoas comuns? Entre os diversos fatores que não sabemos, não perguntamos, ou nos dizem para não perguntar (e que ouvimos com obediência), existe este fator único: humanos, todos nós coletivamente como raça humana, os ninguéns que são como formigas, somos seres que esquecem” (tradução nossa).
Falando em literatura, o mercado editorial chinês também entrou em crise com o COVID-19. Com as dificuldades logísticas, pequenas editoras estão tendo dificuldade em segurar as pontas — um reflexo de uma situação que vem de anos.
As restrições que a pandemia coloca nas cidades está exigindo que muitas pessoas repensem sua relação com o espaço urbano e como ele é organizado. Muitas vezes, grandes epidemias e surtos de doenças abriram espaço para reformas ou políticas públicas muito necessárias em cidades e espaços normalmente invisíveis, e denotam com clareza divisões de classe, como com a zika e a dengue no Brasil. A história das grandes metrópoles chinesas é repleta de lugares esquecidos e populações segregadas, como as quarentenas mostraram. Pode o uso de tecnologia jogar uma luz sobre esses espaços, ou apenas piorar? É uma discussão atual, na medida em que o uso de aplicativos cresceu com o isolamento social e o governo luta contra notícias falsas e para controlar o vírus.
O que Xiao Zhan, ex-integrante da boy band X NINE e uma das celebridades mais famosas do país têm em comum com a Revolução Cultural? Tinha pouco, até os fãs de Xiao Zhan começarem uma verdadeira caça às bruxas online por conta de uma… fan fiction publicada no site AO3. Não satisfeitos com a forma com que o grande ídolo foi retratado na ficção, os fãs começaram a denunciar o site às autoridades chinesas. Usando palavras chaves como “contra valores socialistas” e “liberdade de expressão” inúmeras vezes, as denúncias chamaram atenção do Great Firewall of China, e o resultado não foi bonito: a AO3 foi derrubada no país, e os seus milhões de usuários, furiosos com os fãs de Xiao, começaram uma verdadeira jihad online contra a celebridade.
Neste novo artigo do Elephant Room, você pode entender melhor como o atual comportamento de denunciar tudo e todos que não agradam tem suas raízes lá na Revolução Cultural , em que a desconfiança e o medo reinavam. Vale fazer aquele cafezinho!
Hui: uma série de fotografias retratando a minoria muçulmana Hui, com relatos sobre o medo da islamofobia no país e fora dele.
Arte: conheça a história e o trabalho de Martha Sawyers, artista estadunidense responsável pelas ilustrações nas campanhas da United China Relief durante a Segunda Guerra Mundial.