Newsletter 096 (PT)
Para os chineses, o pior já passou? Após um início de ano difícil, a economia do país deverá embarcar em um período rápido de recuperação no decorrer dos próximos meses. Ao menos é nisso que acredita Chen Yulu, vice-presidente do Banco Popular da China (o banco central do país). Para ele, os indicadores econômicos provavelmente mostrarão uma melhora significativa no segundo trimestre e a economia chinesa logo retomará seu nível de produção potencial. Chen ainda repetiu promessas anteriores de manter o crescimento de oferta de crédito no país e de fazer bom uso das flexibilizações monetárias implementadas pela China.
E tem mais notícia boa: na última quarta-feira (19), a China não registrou pela primeira vez desde o início da epidemia nenhum novo caso de transmissão local do COVID-19. Por um lado, o marco aponta para sucesso das estratégias chinesas para contenção do vírus desde o fim de janeiro. Por outro, persistem as críticas quanto ao abafamento inicial da crise no país por parte das autoridades locais.
O momento, porém, ainda é de precaução. No sábado, após três dias sem transmissões locais, uma nova ocorrência do tipo foi registrada. Além disso, o número de casos importados chegando à China disparou: somente na última sexta-feira (20), foram mais de 40 ocorrências. Pequim e Xangai, grandes portas de entrada do país, foram particularmente afetadas. Como prevenção, várias medidas de quarentena vem sendo impostas a quem chega ao país por vias internacionais, como isolamento mandatório domiciliar ou em hotéis designados pelo governo.
Na última quinta-feira (19), a polícia de Wuhan emitiu um pedido de desculpas e anunciou a retirada de uma carta crítica a Li Wenliang. O médico, que morreu em decorrência do COVID-19 em fevereiro, foi perseguido e silenciado por autoridades locais ao alertar sobre os perigos do vírus ainda no fim de dezembro do ano passado. A decisão se deu horas após a Comissão Nacional de Supervisão, principal órgão anticorrupção da China, divulgar um relatório em tom de reprovação sobre os eventos que precederam sua morte. Passados quase dois meses do episódio, Li segue como um forte símbolo popular de frustração quanto à resposta governamental à crise do novo coronavírus no país.
Na última semana, o deputado federal Eduardo Bolsonaro causou uma crise diplomática entre o Brasil e a China ao declarar que o governo chinês é responsável pela pandemia do COVID-19. Pelo Twitter, Eduardo, que é filho do presidente brasileiro, comparou a resposta chinesa ao novo coronavírus com aquela da União Soviética ao acidente nuclear de Chernobyl em 1986. O deputado completou as acusações afirmando que a culpa da pandemia é da China e que, a seu ver, a liberdade teria prevenido a crise.
Em resposta, Yang Wanming, embaixador chinês ao Brasil, classificou as críticas de Eduardo Bolsonaro como um “insulto maléfico” contra a China, afirmando que elas não condizem a posição pública ocupada pelo deputado. Na tentativa de reparar danos, tanto o presidente do Senado quanto o da Câmara dos Deputados do Brasil emitiram pedidos de desculpas oficiais à China. Ernesto Araújo, ministro das relações exteriores do Brasil, por outro lado, exigiu que o próprio embaixador chinês se retratasse por sua resposta ao deputado. O presidente Jair Bolsonaro, por fim, disse que não há problemas entre o Brasil e a China — mesmo após uma tentativa de contato por parte do chefe de Estado brasileiro ter sido rejeitada por Xi Jinping.
A disputa entre EUA e China pela narrativa sobre o novo coronavírus é parte da discussão de como o Brasil se meteu aqui. Trump está usando frequentemente a expressão “vírus chinês”, o que tem suscitado reclamações de terminologia racista, que acusa um povo por algo fora do seu controle — tem inclusive alimentado ataques xenofóbicos nos EUA. Ele também argumenta de o governo da China é culpado pela expansão da COVID-19 pelo mundo e esse discurso está sendo incorporado por várias personalidades da direita no mundo, inclusive Eduardo Bolsonaro. Enquanto isso, autoridades chinesas têm cada vez mais afirmado que a pandemia não iniciou na China e pode muito bem ter começado nos próprios Estados Unidos. Os ânimos estão quentes.
As doações do Jack Ma, o criador do Alibaba, pelas Fundação Jack Ma e Fundação Alibaba chamaram a atenção da mídia durante a semana ao enviar doações de equipamentos médicos e testes para o Japão, a Coreia do Sul, a Itália, os EUA e o continente africano. O bilionário insiste que a cooperação entre os países é essencial agora para enfrentar o novo coronavírus. Muita gente está enxergando isso como uma maneira da China dar um gás na sua imagem global, pedindo ajuda de figuras como Ma, aliado ao envio de médicos para outros países. Enquanto os EUA e União Europeia deixam a Itália na mão, o governo chinês aparece e demonstra a sua relevância e solidariedade. A Huawei também entrou na onda, enviando máscaras para a Holanda, Coreia do Sul, Itália, Espanha e Japão.
O jogo de xadrez entre Estados Unidos e China no fronte midiático ganhou mais um movimento nesta semana. Desta vez, foi Pequim quem avançou algumas casas ao expulsar jornalistas estadunidenses credenciados ao The New York Times, The Wall Street Journal e The Washington Post. A decisão vem em resposta à redução da quota de 160 para 100 jornalistas chineses habilitados a trabalhar em solo estadunidense. Pequim embasou a decisão por considerar ser “[…] uma reação à altura da opressão desmedida perpetrada às organizações midiáticas chinesas nos EUA” e que a redução “[…] expôs a hipocrisia do autointitulado defensor da liberdade de imprensa”. Confira aqui a íntegra do comunicado oficial do Ministério das Relações Exteriores chinês.
Como proteger a sua privacidade e proteção de dados em meio a crises, como a do novo coronavírus? O professor Hu Yong, da Faculdade de Jornalismo e Comunicação da Universidade de Pequim, escreveu sobre o pertinente tema, num texto intitulado “O interesse público e a privacidade pessoal em tempos de crises”. A tradução foi feita por Jeffrey Ding. A parte 1 diz respeito à questão de privacidade de dados de saúde e como cidadãos tiveram seus passos seguidos até dentro de casa sem consentimento. A parte 2 discute a atuação e legitimidade dos argumentos do governo ao tomar essas decisões, bem como a sua postura ao publicizar esses dados. Ele encerra questionando (frase quase literal): temos a capacidade de reconstruir os espaços privados perdidos, mas será que temos a vontade?
Falando nisso, como ter certeza de que as pessoas que têm que fazer quarentena obrigatória estão realmente ficando em casa? O governo de Hong Kong parece não deixar a resposta apenas à mercê da boa fé das pessoas, e resolveu implementar o uso de uma pulseira rastreadora para quem está chegando na cidade agora. Taiwan entrou na onda e começou a monitorar a localização usando o GPS dos celulares. Quanto vale a privacidade em tempos de crise? Veja mais detalhes das medidas aqui.
Para dar um pouco de esperança. Dia 3 de março em Xangai, três residentes contam como está a cidade que saiu da quarentena. A vida está longe de ter voltado ao pré-pandemia, mas é um pequeno vislumbre de normalidade.
Qual foi o papel da sociedade civil em se organizar durante a crise do novo coronavírus na China? É uma discussão importante, que volta e meia ressurge depois de tragédias no país, como no pós-terremoto de Sichuan, em 2008. Neste texto do ThinkChina traz a discussão que muito mais do que o mérito das ações do governo, a participação das pessoas, empresas e da sociedade civil organizada que garantiu que o pior da crise passasse. Ficou de aprendizado o poder da governança pública, que foi do transporte de equipe médica sem carro para os hospitais, entregas de alimentos e refeições nos hospitais, apoio para pacientes de doenças não relacionadas que estavam com dificuldade em ter acesso a medicamentos e absorventes, dentre outros.
Vergonha. Culpa. Medo. Esses são alguns dos sentimentos relatados por pessoas que sobreviveram ao COVID-19 na China. Após dias internados no hospital e lidando com a incerteza de uma pandemia que mudou por completo o cotidiano, muitos ex-pacientes relatam dificuldades de se reinserir em suas comunidades, pelo estigma que carregam por terem tido o vírus. Mesmo recuperados, vizinhos, colegas de trabalho e até mesmo familiares continuam tratando-os como doentes que deveriam ficar para sempre em quarentena. Ainda não há dados oficiais sobre o impacto do COVID-19 na saúde mental de pessoas infectadas. No entanto, em 2004 quando da epidemia da SARS – cuja escala foi bem menor — 16.4% das pessoas que contraíram o vírus entraram em depressão, e 10% apresentaram sinais de ansiedade, mesmo após 3 meses da alta do hospital.
Lembrem-se: sejam gentis.
Há muitas questões filosóficas que colocam em pólos distintos o Ocidente do Oriente — e mais ainda sobre a própria definição do que venha a ser cada um. Usar ou não usar máscaras em tempos de COVID-19 é uma delas. Vistas como um item obrigatório na China quando do pico da pandemia no país, as máscaras não são recomendadas para uso geral por diversos países ocidentais e pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS). Você já parou para pensar o porquê? Parte da resposta está na baixa capacidade de oferta em países ocidentais e no manuseio indevido das máscaras, gerando mais risco de contaminação. A China, no entanto, é a maior fabricante da mercadoria no mundo e tem uma longa história de uso de máscaras protetoras para lidar com epidemias. Prepare um cafezinho e entenda melhor esse fenômeno aqui.
Playlist: montamos uma playlist no Spotify com episódios interessantes de podcasts sobre China. A maioria é em inglês. Não deixe de conferir!
Dicas de livros: algumas sugestões do que ler durante uma quarentena, segundo a comunidade literária chinesa.
Música e protesto: o convidado Jeff Wasserstrom conversa no Sinica Podcast sobre o papel da música em protestos e revoluções na China moderna.
Saudades de Pequim: confira o trabalho de Liuba Vladimirova, uma residente de Pequim conhecida por retratar o cotidiano da cidade em lindas ilustrações.