Newsletter 104 (PT)
Após ser adiado em dois meses, o evento político mais importante da China ocorrerá nesta semana, no dia 22 de maio. Trata-se das Duas Sessões, um evento anual que reúne representantes da Assembleia Nacional Popular e do Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política Popular Chinesa. Ao marcar uma data para o evento, Pequim está enviando uma mensagem forte para o país e para o mundo: a China está voltando ao normal e a COVID-19 está sob controle. Você pode dar uma olhada em um resumo dos pontos chave das Duas Sessões aqui. Também não deixe de assistir ao ótimo vídeo de Janaína Câmara da Silveira, jornalista da agência chinesa de notícias Xinhua e mestra em economia da China, explicando o que são as Duas Sessões e o que esperar desta edição em tempos tão difíceis.
Uma das questões que deve surgir nas Duas Sessões é a segurança alimentar. A garantia de suprimentos é preocupação antiga de Pequim, com políticas estratégicas sendo tomadas desde 1998. Garantir grãos e afins de países como Austrália, Brasil e EUA faz parte dessa estratégia. Foi uma preocupação séria durante a pandemia e, no futuro, parece que a paisagem pode mudar. Desde 2003, existe um esforço de revitalizar o nordeste chinês, na região da Manchúria, rica em matérias primas, como minério de ferro e terras férteis, mas parece que só agora essa iniciativa vai finalmente engatar.
Boas notícias para a economia chinesa? Após retração no primeiro semestre deste ano, a produção industrial chinesa voltou a crescer em abril. A expansão de 3,9%, porém, é tímida e, dada a baixa na demanda doméstica e internacional, o processo de recuperação econômica do país ainda deve levar um bom tempo. Outros dados reforçam a importância de manter a cautela: as vendas no varejo seguem em queda, assim como o investimento em ativos fixos como imóveis, infraestrutura e bens de capital. Não dava para esperar, afinal de contas, que reerguer uma economia acostumada com décadas de crescimento ininterrupto em tempos de tamanha instabilidade global fosse tarefa fácil.
Já comentamos em edições passadas da Shūmiàn sobre a nova moeda digital do país — o “yuan digital”, ou DC/EP — que inclusive está sendo usada em fase de testes por McDonald’s, Starbucks e Subway em quatro cidades pré-selecionadas. A pergunta que fica agora, no entanto, é a seguinte: por que tem se falado tanto na DC/EP, e o que vai mudar quando a moeda digital for amplamente usada no país? Uma resposta rápida mencionaria custos reduzidos em transações financeiras, fortalecimento da globalização do yuan e combate à lavagem de dinheiro.
Fato interessante é ver a SenseTime fazendo parceria com o Banco Popular da China (PBoC, em inglês) para a elaboração da moeda. Se, por um lado, oferece mais mecanismos de segurança, por outro lado, sugere a possibilidade de utilização massiva de algoritmos para entender e influenciar o perfil dos usuários.
Como a China tem reagido aos ataques de outras nações relacionados à COVID-19? A sinóloga Rosana Pinheiro-Machado aborda a mudança de tom de Pequim para enfrentar a disputa narrativa diante da pandemia. Para Pinheiro-Machado, se antes a China evitava conflitos e era comedida em declarações diplomáticas, a disputa narrativa acerca da origem e do desenvolvimento da COVID-19 parece ter sido a gota d’água. Hora de preparar um cafezinho e ler o texto completo aqui.
Muito tem se falado sobre essas mudanças na política externa chinesa recentemente. Inclusive, aqui. Análise de discurso é uma das maneiras de se analisar essas mudanças. Com base em palavras-chaves nas publicações do People’s Daily, um dos principais jornais estatais do país, Neil Thomas buscou responder três questões sobre as ambições chinesas no palco internacional, e o claro crescimento do seu posicionamento como “potência responsável”. Mas vale resgatar um famoso artigo de 2013 sobre uma contínua representação na mídia e academia estadunidense da assertividade na diplomacia chinesa como algo novo.
Em visita à Israel na última semana, Mike Pompeo, secretário de estado estadunidense, criticou as ações da China durante a pandemia do novo coronavírus e pediu que o governo do país do Oriente Médio pare de assinar grandes contratos de infraestrutura e telecomunicações com empresas chinesas. Rapidamente, Pequim rejeitou as observações de Pompeo e afirmou acreditar que os israelenses serão capazes de derrotar não somente o coronavírus mas também o “vírus político”, além de “escolher o curso de ação que melhor atenda aos seus interesses”.
Coincidentemente, Du Wei, embaixador chinês a Israel, foi encontrado morto em sua própria casa na manhã desse domingo (17). O episódio foi prato cheio para os conspiracionistas de plantão, que agora apostam que a recente tensão triangular entre Estados Unidos, China e Israel seja a explicação para o ocorrido. De acordo com autoridades locais, porém, o falecimento está sendo investigado como morte por causas naturais.
Uma recente discussão sobre uma “nova Guerra Fria” entre China e EUA ganhou destaque entre especialistas em assuntos chineses. De fato, a retórica entre os dois países tem se tornado cada vez mais acirrada, com alguns analistas avaliando que, apesar de isso ter começado em 2013, só ganhou corpo com Trump e a pandemia. A discussão sugere que seria impossível uma divisão geopolítica tal qual aconteceu entre URSS e EUA. Mas será que poderia ser só uma maneira de os EUA não lidarem com seus próprios problemas?
E vale lembrar também que, no acirramento dessas relações, as pessoas acabam sofrendo com a mudança de clima, crescente perseguição e xenofobia. Nesse sentido, é importante o relato da morte do professor de Stanford e físico, Zhang Shoucheng.
Na última semana, circularam pela mídia chinesa e internacional informações sobre um plano do governo chinês para a cidade de Wuhan: em 10 dias, pretendia-se testar todos os 11 milhões de habitantes da cidade para o novo coronavírus. Será que uma meta tão ambiciosa, contudo, poderá mesmo ser cumprida? Pouco provável. Mesmo batendo seu próprio recorde de teste em um mesmo dia, Wuhan conseguiu testar “apenas” pouco mais de 200 mil pessoas no última sábado (16). Se esse ritmo for mantido, a cidade precisaria de mais de um mês para cobrir toda a sua população — mesmo que uma parte dela já tenha sido testada. Ainda assim, o esforço para ampliar o número de testes realizados, mesmo que possivelmente aquém do discurso oficial, deve auxiliar Wuhan a conter o cenário de um segundo surto do vírus na cidade.
Para a retomada das aulas no início do mês, em Wuhan, diversos alunos foram testados para COVID-19 e aqueles que deram positivo ficaram isolados em espaços providenciados pelo governo, com acompanhamento médico, acesso a aulas online e acompanhamento psicológico. No Brasil, a discussão sobre o adiamento ou não do ENEM está forte. A China decidiu adiar o exame de entrada nas universidade, o gaokao, para julho (normalmente ocorre em junho). Contudo, para os chineses nascidos nos anos de crescimento, a ansiedade vai além de passar no exame. Muitos estudantes estão preocupados com o futuro, especialmente no pós pandemia. É a primeira grande crise econômica que essa geração, a maioria de filhos únicos, vê no país — e a incerteza assusta.
A ascensão e queda de Fang Fang (方方), uma escritora chinesa que ficou conhecida por publicar um diário durante a quarentena em Wuhan, é um exemplo voraz da crescente politização da pandemia e da cultura de denúncias a la Revolução Cultural no país. Inicialmente, os relatos de Fang Fang eram recebidos com grande sucesso — ela falava o que muitos queriam dizer sobre os primeiros dias da pandemia, o acesso à informação que havia na época e coisas mundanas de um dia a dia em confinamento. Com a expansão do vírus no mundo, passaram a ser interpretados como uma traição à China por milhões de leitores, o que só piorou depois que o diário começou a ganhar fama internacional e ser traduzido para inglês e alemão (disponível na Amazon). Fang Fang tem recebido ataques online e offline de pessoas comuns e de parte da mídia estatal. Na cidade de Wuhan, cartazes contra a escritora foram vistos pelas ruas. Você pode ler aqui um trecho do diário.
Citando a necessidade de ajustes estratégicos devido à pandemia do novo coronavírus, a Universidade Tsinghua, melhor instituição de ensino superior da China, anunciou mudanças importantes em sua Escola de Jornalismo e Comunicação. Já a partir deste ano, a instituição não aceitará mais a matrícula de alunos de graduação, mudando seu foco para a pós-graduação e concentrando-se em novas áreas de pesquisa como opinião pública global e mudanças no ambiente internacional.
A Tsinghua, contudo, não foi a única grande universidade chinesa a aparecer na mídia nesta semana. Yao Yang, reitor da Escola Nacional de Desenvolvimento da Universidade de Pequim, conversou ainda no mês passado com a Beijing Cultural Review sobre a possibilidade de “nova Guerra Fria” exacerbada pela pandemia da COVID-19. Agora traduzida para o inglês, a entrevista revela o tom cauteloso de Yao quanto aos desafios que se colocarão frente à China no futuro próximo e, ainda, sua convicção de que o país deve ser franco e transparente sobre seus erros e acertos na contenção do novo coronavírus.
Como pintar uma pandemia: o pintor Li Zhong está registrando, em estilo tradicional da pintura chinesa, a atuação dos trabalhadores na linha de frente do combate ao vírus no país. Vale conferir.
Podcast: Samuel Wejchert e Shengke Zhi conversam sobre as inovações chinesas no campo de mercado de carbono e como o pós pandemia pode impulsionar políticas de redução de emissões poluentes.
Nostalgia: um vídeo colorido de Pequim dos anos de 1920. As imagens, originalmente em preto e branco, ganharam cores com o uso de inteligência artificial. Não perca!
Entrevista: o autor de ficção científica Liu Cixin, autor da famosa trilogia d’O Problema dos Três Corpos, foi entrevistado por Ronaldo Lemos durante o evento virtual Rio2C. Dá para conferir aqui.