Edição 243 – Duas Sessões têm crítica aos EUA

Foi dada a largada. As Duas Sessões (ou lianghui 两会), o encontro anual da legislatura chinesa, tiveram início oficial no sábado (4), em Pequim, e seguem até o dia 13. À abertura, compareceram quase 2950 delegados, além de diplomatas, jornalistas e militares — como relatou a correspondente Elizabeth Law. Na saída do cargo de primeiro-ministro, Li Keqiang entregou o seu 10º relatório de trabalho para a Assembleia Popular Nacional (APN). Nele, Li enfatizou as incertezas globais, como a alta da inflação e a instabilidade do mercado imobiliário na China. Ele falou ainda sobre a priorização do governo de criar empregos, mantendo os preços e o crescimento num patamar estável. Ele anunciou que o país estabeleceu uma nova meta de crescimento do PIB em 5%. Além de Li Keqiang, também se aposenta da liderança Sun Chunlan, a única mulher no Politburo — o comitê agora ficará sem nenhuma representante até o próximo Congresso Nacional do PCCh, no ano de 2027.

Em outra sala, Xi Jinping já lançou o novo bordão “dois essenciais” ou two must-haves sobre a economia: (1) garantia de suprimento de grãos e (2) indústria manufatureira. Durante uma reunião, o líder chinês também enfatizou o papel da modernização do país – algo que já havíamos sinalizado. Mas o que ganhou as manchetes foi o fato de Xi ter citado nominalmente os Estados Unidos como responsável por liderar uma estratégia ocidental de contenção e supressão do desenvolvimento chinês. Logo em seguida e na mesma leva de tensões pós-balão, em uma coletiva de imprensa, o chanceler Qin Gang lançou mais uma série de críticas ao país norte-americano e às “consequências catastróficas” que a postura dos EUA pode ter.

Como também antecipamos na semana passada, uma série de mudanças institucionais e reorganização na governança estão sendo anunciadas no âmbito do Conselho de Estado, com a aprovação final no dia 9. São 13 mudanças principais, incluindo outras reformas passadas pela APN, como organizado e compilado nesse excelente trabalho em grupo no Ginger River Review. Vale destacar a criação de um órgão estatal para a administração de dados (tradução por DigiChina) e um regulador do setor financeiro.

Importante: o órgão legislativo 中华人民共和国全国人民代表大会 é traduzido para o inglês como National People’s Congress e para o português como Assembleia Popular Nacional ou Congresso Nacional do Povo. Temos usado ambos de forma alternada ao longo desses quatro anos de newsletter. Como a Embaixada da China no Brasil utiliza Assembleia Popular Nacional, passaremos a adotar essa versão como oficial. O NPC Observer é um bom lugar para acompanhar os meandros do evento, explicando como a Assembleia Nacional do Povo confirma uma série de cargos e trazendo uma análise demográfica dos participantes do 14º encontro.

É a economia. Nem só de discussões com políticos vive o presidente Xi Jinping. Na segunda-feira (6), o líder chinês se reuniu com representantes do setor privado do país para dar mensagens bem claras do que o partido, e seu governo, esperam do empresariado: apoio. O recado de Xi foi lido como forte e direto, sobretudo quanto ao pedido para que setores da indústria se mantenham unidos ao ideário nacional na defesa do país. A CNN interpretou como uma mensagem relativa a ações externas, sobretudo dos Estados Unidos, que têm adotado medidas para conter a expansão chinesa no mundo. Para entender melhor as nuances da fala de Xi, vale passar um chá e degustar esta edição do Tracking People’s Daily, uma verdadeira decodificação da mensagem do líder chinês.

O 8 de março em Hong Kong foi mais amargo este ano. A passeata da Associação de Trabalhadoras de Hong Kong, primeiro protesto por direitos civis desde 2019, prevista para acontecer no último domingo (5), foi cancelada pela organização. A razão não foi anunciada, mas especula-se que tenha sido por conta da Lei de Segurança Nacional (que responsabilizaria a organização pelas manifestações políticas de todos participantes), ou ainda para evitar constranger as Duas Sessões em Pequim. O cancelamento de um evento que promoveria a igualdade de gênero, direitos trabalhistas e das mulheres pegou especialmente mal pelo timing: a cidade ainda discute a violenta morte de Abby Choi, assassinada pelo ex-marido em 20 de fevereiro.

Preparativos para ida de Lula à China. Falta menos de um mês para o presidente Lula desembarcar em Pequim, onde se reunirá pela primeira vez com Xi Jinping. Embora não haja data confirmada para a visita, a equipe presidencial brasileira prepara o encontro para o fim de março e o noticiário sobre a relação bilateral está intenso. Em seu blog, a jornalista Julia Duailibi escreve que o petista levará uma proposta para que seu contraparte chinês integre o “Clube da Paz”, como vem sendo chamada a iniciativa tocada por Lula para tentar mediar o fim da guerra entre Rússia e Ucrânia.

Uma pedra no sapato da relação Brasil-China pode ser os Estados Unidos. A equipe presidencial, sobretudo o principal conselheiro de Lula para assuntos internacionais, Celso Amorim, defende uma postura de neutralidade na disputa entre as duas maiores economias do globo. É possível? Este tema é explorado neste artigo de opinião de autoria de Maiara Folly e João Cumarú. A recente tentativa dos EUA de investir na produção de semicondutores no Brasil pode ser um dos entraves, como conta esta reportagem da Folha. Por fim, mas não mais importante, a gestão Lula tem tentado se vender como aliada do meio ambiente, uma pauta também cara à administração de Xi. Os caminhos — e as barreiras —  para isso são explorados neste texto do Dialogo Chino.

Quase Brics. Durante a segunda metade de fevereiro, a África do Sul conduziu exercícios militares — considerados de rotina — em conjunto com a Marinha da Rússia e da China. Chamou atenção o fato de serem realizados tão próximos ao aniversário da invasão da Ucrânia. A leitura de diversos analistas é de que ficou estranha a situação pelo posicionamento de não alinhamento que é comum à África do Sul, mas o argumento do governo sul-africano é que é necessário fortalecer o bloco dos Brics. A discussão foi tema da coluna de Marcelo Ninio para O Globo. 

A Iniciativa de Segurança Global (ISG), carro-chefe da política de segurança internacional do governo chinês, foi oficialmente lançada no final de fevereiro por Qin Gang, ministro de Relações Exteriores. Durante o carnaval, Wang Yi participou da Conferência de Segurança de Munique, um dos principais fóruns globais sobre o tema, onde explicou as posições chinesas com relação à invasão da Ucrânia, situação do estreito de Taiwan, entre outros. Na sequência, foi divulgado um documento (em inglês) que explicita alguns pilares da ISG, como, por exemplo, a centralidade da ONU, a concertação entre grandes potências e o apoio ao diálogo para distensão em zonas de atrito. No Brasil, a Folha publicou um artigo do embaixador da China no país, Zhu Qingqiao, sobre a iniciativa chinesa e suas motivações. Segundo análise da Jamestown Foundation, por mais que possa parecer não trazer nada de novo, a ISG não deveria ser subestimada pelos seus rivais.

Quão cedo é agora? Um casal de Shanghai virou notícia ao decidir se aposentar antes dos 50 anos sem ser super rico. Os Chen, uma ex-designer de jogos e um ex-profissional do mercado imobiliário, tomaram a decisão após ficarem desempregados no final do ano passado. Com uma vida simples, caseira e muito menos ansiosa, eles calculam que podem viver os próximos 30 anos com os 10 mil yuan (1.400 dólares) mensais que rendem suas economias de 3 milhões de yuan (ou 43.000 dólares). Há quem ache que as contas não fecham ou que eles podem viver além dos 30 anos, mas traz alguma paz ler o relato dos Chen, recomendamos. O casal enquadra sua decisão como uma adoção do estilo de vida tang ping (躺平), um movimento da juventude chinesa que está exausta, sobre o qual já falamos por aqui.

Empurrãozinho. É chover no molhado falarmos aqui do quanto o governo chinês tem tentado — sem sucesso — fazer com que a população tenha mais filhos. A Caixin traz uma iniciativa de Hangzhou, um dos hubs tecnológicos da China, onde fica a sede do Alibaba. De acordo com a reportagem, famílias que tiverem dois ou três filhos terão um auxílio de quase 3 mil dólares ao ano. Seria suficiente?

As marcas de um vírus. Agora que a abertura da China se concretizou, a Sixth Tone resolveu se dedicar a uma série de reportagens que contará com viagens para diferentes localidades do gigante asiático. O objetivo é narrar o impacto que a pandemia — e a política de Covid zero — tiveram no país. Vale mergulhar neste especial e ler a história de Hebian, na província fronteiriça de Yunnan, que tinha investido em planos para ser um destino turístico como forma de combater a pobreza — política frequente na zona rural do país. Hoje, Hebian segue em frente com o seu objetivo e traz uma importante reflexão sobre o que vem aí no pós-Covid zero.

Zheng He foi um grande explorador chinês do século XV. Sob seu comando, o império da China chegou a praticamente todos os cantos do mundo. Esta seção é inspirada nele e te convida a explorar ainda mais a China.

Fotografia: conheça um pouco sobre a vida e a obra do fotógrafo Wang Yuwen. Falecido no final de fevereiro, ele se especializou em registrar em branco e preto a vida da classe trabalhadora, especialmente mineradores, a partir dos anos 1970.

Fandom: a newsletter Active Faults é um excelente mergulho na cultura de fãs e fandoms na China. Esta edição recente é sobre o famoso Jackson Yee, um dos grandes idols chineses, sobre ele ter garantido uma posição vitalícia no serviço público numa situação meio estranha e as reações a isso.

Nem todo pão é igual: para o brasileiro acostumado com o pão francês, comer pão na China pode ser uma experiência nova. A Goldthread explica neste vídeo por que o pão na Ásia é diferente e as variações mais comuns. 

Tudo agora, de uma vez: por meio de um filme estadunidense, a cultura chinesa está representada no favorito ao Oscar, que acontece no próximo domingo (11).  Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo combina multiverso, Ano Novo Lunar e um certo lost in translation entre mandarim, cantonês e inglês.

Literatura: falando em imigrantes chineses nos EUA, o livro The Chinese Groove, da autora Kathryn Ma, foi resenhado pelo The New York Times, que debateu as dificuldades e falsas promessas enfrentadas por pessoas estrangeiras que escolhem morar no país. 

Humor político: as Duas Sessões já têm meme depois de Qin falar que os diplomatas chineses não são lobos-guerreiros, mas sim que dançam com lobos, conta Manya Koetse. Teve também fancam do porta-voz Wang Wenbin. Não é só no Brasil que a galera transforma tudo em meme.

Um lindo vídeo sobre a rotina e história de Zhang Jiling, uma mulher de 52 anos, na Faculdade de Tecnologia e Negócios de Shanxi.