Nacionalismo chinês, à procura pelo passado e futuro que convêm
Por Daniel de Oliveira Vasconcelos*
Em uma recente reunião de alto nível no Alasca, representantes chineses se reuniram pela primeira vez com a delegação do recém-empossado presidente estadunidense Joe Biden. As expectativas eram altas: era ali que o mundo testemunharia a política externa dos democratas para a China após a era Trump. Do lado dos Estados Unidos, o tom agressivo se manteve, apesar da troca de governo. Do lado chinês, o que chamou particular atenção foi a forma assertiva — e igualmente agressiva — adotada por seus representantes.
Muitos na China compararam a atual situação com outra, de há mais de um século: o evento entre China e países europeus que deu fim à Revolta dos Boxers, com a assinatura de um vergonhoso Protocolo para os chineses em 1901. Ao contrário do ocorrido um século atrás, quando os chineses se viram forçados a abaixarem a cabeça e se “humilharem” diante do imperialismo europeu, os chineses de hoje teriam do que se orgulhar: seus representantes mantiveram uma postura altiva, que não se curvou aos caprichos da grande potência.
Na verdade, esse encontro demonstra que o nacionalismo chinês não só está vivo, como também acompanha a ascensão da riqueza e do poder da China no mundo. Mas, não nos precipitemos: esse nacionalismo, bem como seus fundamentos, não é novo. Bebe dos marcos históricos de declínio do império chinês e de contato com o mundo ocidental desde meados do século XIX.
O nacionalismo chinês: uma novela antiga
O nacionalismo chinês nasceu do reconhecimento de que sua condição nacional (guoqing 国庆) era de grande fragilidade. A inabilidade do império em conter o expansionismo estrangeiro por todo seu território após a Primeira Guerra do Ópio (1840) foi motivo de preocupação por parte do próprio governo, encabeçado pela Imperatriz Cixi. Ela, então, propôs a modernização da Marinha e a utilização instrumental das técnicas ocidentais (yong 用) com a manutenção da essência chinesa (ti 体) em uma campanha de auto-fortalecimento (ziqiang 自强).
Críticos do império, como Liang Qichao e Sun Yat-sen, foram mais a fundo, questionando a própria essência da cultura tradicional chinesa, de inspiração confucionista. Segundo eles, a China precisaria lutar para restaurar “a riqueza e o poder” (fuqiang 富强) e se libertar da posição de inferioridade e desesperança que se encontrava. “Riqueza e Poder”, um conceito resgatado do período dos Estados Combatentes (476 a.C. a 221 a.C), mantém-se como a base do nacionalismo chinês até hoje.
Outra grande influência sobre o nacionalismo chinês se dá na década de 1910 e 1920, com o expansionismo japonês sobre a China. Os Movimentos da Nova Cultura e do Quatro de Maio, que nasceram dos protestos contra o Japão, consolidaram a certeza a respeito do atraso da cultura chinesa. Além disso, as mobilizações dão vida ao conceito da “humilhação nacional” (guochi 国耻) sofrida nas últimas décadas por conta do expansionismo europeu e japonês, com jornais da época clamando para que as pessoas “nunca esqueçam a humilhação nacional” (wuwang guochi 勿忘国耻).
E elas não se esqueceram. O século da humilhação é peça chave do nacionalismo contemporâneo chinês. A luta pelo “Grande Rejuvenescimento” da civilização chinesa (weida fuxing 伟大复兴), promovido por Xi Jinping, é o grande projeto de restauração da “riqueza e poder” da China. Em outras palavras, é o “Sonho Chinês” (zhongguo meng 中国梦) de prosperidade a fim de evitar o retorno ao século da humilhação, o qual a China estaria em posição de fragilidade para ser novamente conquistada e “destroçada” pelas grandes potências.
A história da República Popular da China, governada pelo Partido Comunista Chinês (PCCh), é uma extensão desse nacionalismo reativo. O nacionalismo foi a grande força de legitimação do regime, apoiado pela ideologia comunista e pelo grande desenvolvimento econômico recente. Durante suas décadas no poder, Mao Zedong pôs em prática o nacionalismo chinês dos Movimentos da Nova Cultura e do Quatro de Maio, tal como Sun e Liang teorizaram: “destruir o velho para dar lugar ao novo”. A cultura tradicional chinesa tinha que ser apagada da história.
Se, por um lado, o novo nacionalismo de Xi Jinping se sustenta no século da humilhação e na busca de riqueza e poder — não se desvinculando, portanto, de uma tradição de quase dois séculos —, ele agora promove o retorno a essa cultura chinesa historicamente rechaçada. Seus discursos estão repletos de referências a filósofos e conceitos antigos, e a promoção da história e cultura chinesas é incentivada. Hoje, os chineses afirmam fazer parte de uma “civilização de cinco mil anos de história”. Dessa forma, o nacionalismo chinês está resgatando sua identidade perdida.
O mesmo personagem para diferentes histórias
Muitas das manifestações que testemunhamos nos últimos anos são resultado desse nacionalismo que mistura a nação com o próprio partido. O PCCh procura emplacar a continuidade da nação chinesa através dos milênios, sendo o próprio partido o herdeiro direto dessa cultura milenar. Nacionalismo de Estado e nacionalismo popular se entrelaçam e se estreitam no “Sonho Chinês”. Isso pode ser visto em diversas manifestações, como o nacionalismo territorial, o patriotismo na internet e o “tecno-nacionalismo”.
O nacionalismo territorial pode ser observado na retaliação que várias empresas e celebridades internacionais sofrem por seu envolvimento em temas sensíveis, como Hong Kong, Tibet e Xinjiang, ou com racismo sistêmico contra asiáticos. A política de unidade territorial do PCCh tem respaldo popular na China continental, como demonstram as campanhas de boicote. Essas campanhas também são exemplo de patriotismo na internet. Em março de 2021, por exemplo, diversas empresas chinesas, como relatado pela Shumian, decidiram suspender a compra de algodão proveniente da província de Xinjiang. A resposta dos netizens foi imediata, promovendo um boicote nacional, apoiado também por celebridades.
A China apenas se vê em uma posição que não mais precisa abaixar sua cabeça, com o grande crescimento das últimas décadas
Por fim, também ocorre a ascensão de um “tecno-nacionalismo” na China. Ele está atrelado à missão nacional pela busca da riqueza e poder, já que o avanço tecnológico é tido como a grande alavanca para o desenvolvimento no século XXI. Além das iniciativas do governo, como o Made in China 2025 e a Estratégia da Dupla Circulação, a sociedade chinesa também procura apoiar suas empresas nacionais. Huawei, Tencent e Alibaba, por exemplo, estão cada vez mais ocupando o centro do setor de tecnologia e o fazem com apoio da população, que consome seus produtos e as defende na internet.
Para a China, o “Sonho Chinês do Grande Rejuvenescimento” é a busca para re-ocupar seu “lugar de direito”, não sendo considerada uma política expansionista. Ele bebe do século da humilhação e da busca pela riqueza e poder, reativa ao que entende como agressões das grandes potências. Também não é universalista pois procura uma “re-sinização” somente de seu próprio povo. A China apenas se vê em uma posição que não mais precisa abaixar sua cabeça, com o grande crescimento das últimas décadas. O nacionalismo chinês de hoje está dançando conforme a música sem se esquecer do passado que lhe convém.
*Daniel Vasconcelos é Mestre em Estudos sobre a China (Política e Relações Internacionais) pela Academia Yenching da Universidade de Pequim e graduado em Ciência Política pela Universidade de Brasília. Contato: daniel.vas2@gmail.com