Foto de Thana Gu disponível no Unsplash

Distorções sociais agravadas pelo hukou na China

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Imagina que você está viajando de carro com dois amigos seus e um acidente fatal põe fim ao que seria um belo final de semana. O seguro arca com suas responsabilidades, mas de maneira distinta para cada pessoa: às famílias das vítimas que têm um registro urbano, 200.000 reais. À pessoa de registro rural, menos da metade — 80.000 reais. O mesmo acidente. Três vidas perdidas. Valores desiguais.  同命不同价, ou preços diferentes para o mesmo destino (tradução livre). Isso podia acontecer na China até bem pouco tempo atrás — a história do início do parágrafo é real. Com base na interpretação de uma Lei de 2003, vítimas de acidentes podiam receber valores distintos a depender de seu hukou; como o valor é calculado multiplicando por 20 a renda anual de residentes urbanos ou rurais da província a que pertencem, o valor da indenização podia ter uma diferença absurda, mesmo em casos como o que relatamos.

Em uma revisão feita em 2020, a Comissão de Assuntos Legislativos do Comitê Permanente do Congresso Nacional do Povo (NPCSC, sigla em inglês) refletiu sobre pedidos de mudança da lei e reformas que o hukou tem sofrido desde 2013 em seu relatório anual sobre “registro e revisão”. Para que a lei seja alterada, a Suprema Corte da China recomendou primeiro testes pilotos de padronização de indenizações nas províncias em casos de acidentes, que ainda estão em andamento.

De olho no envelhecimento da população, a China anunciou uma revisão em seu sistema de saúde. Uma das principais mudanças seria mudar boa parte dos fundos arrecadados de um sistema individual para um coletivo, com o objetivo de evitar distorções e proteger os mais velhos, por exemplo. Além disso, o trabalhador também poderá incluir familiares como beneficiários do seu fundo. A expectativa é de que a mudança ofereça mais subsídios para cuidar da saúde de aposentados, que exercem a maior pressão sobre o sistema atualmente. Resolver o problema de saúde de um país tão populoso não é tarefa simples, por isso trazemos outras referências para quem quiser ler mais sobre o assunto, como essa série feita pelo Sixth Tone em 2017 sobre as reformas. Já contamos aqui também exemplos de soluções privadas, como a criada por Jack Ma há alguns anos.

Nem mesmo o ex-premiê chinês Wen Jiabao escapou de ter um texto censurado. Essa semana, um jornal de Macau publicou um ensaio do ex-primeiro-ministro. O texto era uma homenagem à sua mãe, falecida no final de 2020, a pretexto do Festival de Qingming, sobre o qual comentamos recentemente. Mas para observadores mais atentos, o conteúdo parecia também dirigir críticas ao governo central — ou, ainda, ao líder Xi Jinping, responsável pela atual direção do Partido, divergente da corrente mais liberal/reformista defendida por Wen. Além da publicação em um desprestigiado veículo fora da China continental, outro indício de que o texto seria polêmico foi sua censura nas mídias digitais após intenso compartilhamento. O texto do China Digital Times explora um pouco mais a história.

A reforma do sistema eleitoral de Hong Kong ainda não acabou. Essa semana, um comitê do Conselho Legislativo de Hong Kong começou a analisar uma lei que busca criminalizar o cidadão que sugerir a um eleitor anular seu voto ou a não comparecer às eleições locais. O crime poderia ser designado mesmo sem provas de que a intenção da pessoa seja incitar um boicote ao pleito e inclui tanto sugestões verbais quanto simbólicas, como por exemplo uso de roupas, bandeiras ou outros símbolos sugestivos. Essa proposta vem na esteira de outras mudanças propostas por Pequim para aumentar seu controle sobre o cenário político local, como já contamos aqui.

Ainda dentro da intersecção Pequim, Hong Kong e política, nessa semana foi detectado que o site da igreja presbiteriana de Taiwan não é mais acessível em Hong Kong. Netizens especulam que isso se dê pela atuação política do grupo religioso e sua oferta de bolsas de estudos para manifestantes honcongueses em Taiwan.

O fórum era asiático, mas o destinatário tinha nome e endereço bem longe dali: os Estados Unidos. No discurso de abertura do Forum Boao (20), Xi Jinping falou por 18 minutos sobre a importância do multilateralismo e de não permitir que “certos países hegemônicos” ditem as regras do sistema internacional e ajam de maneira unilateral no mundo. Xi ressaltou diversas vezes a importância das Nações Unidas para a paz e o desenvolvimento, com destaque para a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Mundial do Comércio (OMC). A globalização — que com frequência aparece nos discursos do presidente chinês como no marcante discurso de Davos de 2017 — esteve bastante presente também e foi colocada quase como um destino inevitável. Por fim, Xi bateu bastante na tecla de cooperação internacional para facilitar o acesso a vacinas para países mais pobres e deixou uma frase que não para de ser repetida na mídia chinesa: “O mundo precisa de justiça, não de hegemonia”. O recado está dado.

Falando em fóruns multilaterais e em EUA, a Cúpula do Clima organizada por Biden fez pipocar análises de que Washington seria a mais nova liderança em questões climáticas. Verdade ou não, vale a pena ler a análise de Gao Xiaosheng sobre as mudanças de percepção internacional sobre a China em temas ambientais desde 2009. Xi não anunciou novas metas no evento, mas as antigas já eram ambiciosas.

Republicanos e democratas parecem seguir unidos para conter a China. É o que aparenta estar acontecendo depois de uma comissão do Senado dos Estados Unidos ter dado aval a um projeto de lei que visa pressionar Pequim em várias frentes. A proposta conta com apoio dos dois maiores partidos estadunidenses, além do próprio presidente Joe Biden, segundo a Reuters. Na última quarta (21), o texto ganhou uma série de emendas na comissão de relações exteriores do Senado como incentivo para boicote às Olimpíadas de Inverno de Pequim, endossando a recomendação da comissão de liberdade religiosa dos EUA. Além disso, um grupo de senadores e deputados propôs a criação de um fundo de 100 bilhões de dólares em cinco anos para serem investidos em tecnologia. Recomendamos ainda este fio, detalhando alguns dos pontos de debate em uma versão antiga projeto, como a indicação de 300 milhões de dólares ao ano para “conter o Partido Comunista Chinês”. Já Pequim respondeu à iniciativa como uma “distorção dos fatos, misturando preto com branco e pintando a China como uma ameaça”.

A Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, sigla em inglês) sofreu um revés na Austrália, após Camberra vetar acordos de investimentos firmados por Victória, estado australiano, com a China. Pequim criticou a decisão, considerada uma provocação gratuita, e ameaçou retaliar. O governo da Austrália afirma que não houve direcionamento contra Pequim, apenas um desejo de alinhar os convênios assinados por autoridades locais e regionais à política externa do país. Desde o ano passado, as relações entre os dois países pioraram bastante, especialmente após o governo australiano vetar tecnologia chinesa em sua rede 5G e ter insistido em culpar a China pela pandemia de Covid-19 — medidas que foram respondidas com a imposição de tarifas comerciais. Esse acontecimento ocorreu na mesma semana em que um relatório da Comissão de Desenvolvimento e Reforma Nacionais da China advertiu que projetos da BRI vêm enfrentando cada vez mais riscos políticos.

Com o aumento estrondoso de casos na Índia, um pouco de diplomacia da vacina pode ajudar as tensões na vizinhança: essa semana a China ofereceu ajuda ao país para lidar com a recente explosão de casos e hospitalizações por Covid-19. Nova Deli está em busca de suprimentos médicos, especialmente oxigênio, e de vacinas em um contexto de mais de 300 mil novos casos diários. A despeito de disputas fronteiriças, a Índia recebeu bem a oferta de auxílio da China, especialmente após os EUA dificultarem (ou mesmo bloquearem) a exportação de vacinas e insumos para produção de vacinas no país. Rússia e outros países também acompanharam a China na prestação de socorro à Índia.

Mais uma vez, a África é colocada como tabuleiro de disputa geopolítica entre China e EUA. Afastando-se do desprezo de Trump pelos países do continente, Biden deve mudar a abordagem e revisar a presença dos EUA por lá (no que muitos veem como necessidade para contrapor a relação sino-africana). Em sinal de aproximação, ele convidou cinco líderes africanos para a Cúpula do Clima. No jornal estatal chinês Global Times, um op-ed analisa que essa nova política externa dos EUA para a África copia muita coisa de Pequim. A última edição do Protocol China discute como pode se dar essa nova dinâmica, que muitos enxergam como contraposição às relações sino-africanas. Como coloca Cobus van Staden, países ocidentais têm dificuldade em replicar a amplitude do engajamento chinês no continente, e a área de tecnologia é um exemplo: a África é um mercado prioritário para muitas empresas da China no setor, mas o mesmo não pode ser dito para empresas dos EUA, por exemplo. Para as nações africanas, muitas vezes faltam opções em um setor cujo papel é inegável para o desenvolvimento socioeconômico local.

Vale ouvir também este episódio do final de 2020 do China-Africa Podcast, sobre o papel da China na infraestrutura de tecnologia do leste africano. Uma reflexão importante é trazida também pelo artigo de Willem Gravett (da Universidade de Pretória), que discute sobre a ideia de neocolonialismo digital a partir da adoção de tecnologia chinesa no continente.

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Tá bom pra cachorro: o mercado de luxo dos pets está bombando na China e o número de “consumidores” não para de crescer — tendo chegado a uma população de mais de 100 milhões de gatos e cachorros em 2020. O mercado, avaliado em mais de 31 bilhões de dólares, beneficia-se com a demografia dos donos de animais de estimação, uma geração jovem (de 18 a 25 anos), majoritariamente urbana, ligada em influenciadores digitais (que também entraram na onda da “pet economy”) e com renda disponível para gastar com caninos e felinos, ainda mais durante a pandemia. Marcas de luxo como Louis Vuitton, Hermès, Prada e Tiffany perceberam o nicho e criaram produtos exclusivos como jaquetas e joias, que variam de 3 mil a 21 mil reais. A PwC preparou um relatório apontando as futuras tendências do mercado e produtos que devem gerar mais lucro nos próximos anos.

Sem destino? No seu famoso livro Country Driving, o escritor Peter Hessler fala sobre a sua experiência viajando de carro pela China numa época em que o país estava numa fase de expansão de rodovias e pavimentação. Cerca de 10 anos depois, o país viu um crescimento vertiginoso de estradas e também de uma cultura de motoqueiros, como mostra o artigo no The World of Chinese. Não são só aquelas motocas que a gente vê nas grandes cidades chinesas, mas as motos também são ferramentas de trabalho e uma atração para jovens no interior. Com esse crescimento, surgiram clubes de aficionados no melhor estilo Easy Rider, que também inspiram quem quer viajar de um jeito mais independente (como mostra o dinamarquês Mads Nielsen no vídeo do SupChina pela província de Qinghai).

Com a vitória de Chloé Zhao no Oscar, talvez Pequim tenha perdido uma oportunidade de demonstrar soft power. A diretora, nascida na capital chinesa, mas há mais de uma década vivendo no exterior, tinha caído nas graças da mídia de seu país natal após a vitória histórica no Globo de Ouro. Só que uma entrevista dela, concedida em 2013, causou incômodo por falar que o país era repleto de mentiras — o que muitos viram como crítica ao governo. Desde então, o seu filme “Nomadland” perdeu a data de estreia na China, como contamos aqui. Após a vitória de ontem (25), diversas pessoas relataram posts sobre Zhao sendo derrubados nas redes sociais chinesas. Seu discurso de vitória (também histórica, por ser apenas a segunda mulher a ganhar a estatueta de Melhor Direção e a primeira não-branca) incluiu o primeiro — e belo — verso de um famoso poema chinês, recitado em mandarim. Um editorial do Global Times abordou a questão do ponto de vista das relações EUA-China e colocou Zhao como uma possível ponte de mediação.

Demos uma prévia no nosso fio do Twitter e na newsletter passada sobre as polêmicas envolvendo a diretora e também a exibição da premiação em Hong Kong. O documentário curta-metragem sobre os protestos de 2019 (“Do Not Split”) não venceu. O longa-metragem “Better Days” (de Hong Kong), indicado para Melhor Filme Internacional, viu-se num imbróglio com as autoridades, como conta a matéria do Hollywood Reporter. A produção foi colocada numa disputa entre diretor, produtores e governo e, apesar do sucesso inicial, começou a ser ostracizada por ter sua “identidade” honconguense questionada.

Nem meio século de união fez a vida de Yuan e Li fácil. Como o casamento homoafetivo ainda é ilegal na China, a história de amor de duas mulheres agora com 70 anos não teve um final feliz. Yuan foi diagnosticada em 2019 com atrofia cerebral e perda de memória, o que fez com que a Justiça reconhecesse sua irmã como sua guardiã legal. Nesse contexto, a família de Yuan entrou com um processo na Justiça para que sua ex-companheira devolvesse 294.000 renminbi (aproximadamente 250 mil reais) que estavam disponíveis numa conta conjunta delas. O tribunal, mesmo reconhecendo que ambas eram um casal na prática, deu a vitória à família de Yuan, porque as leis atuais não preveem proteção a casais homoafetivos. Situações como essas mostram que o relacionamento entre duas pessoas do mesmo sexo na China segue enfrentando preconceitos e falta de reconhecimento legal, apesar de alguns avanços nos últimos anos. Este texto do South China Morning Post, de dezembro de 2020, mostra um relatório sobre o tema. Nós já falamos sobre união homoafetiva aqui, caso você queira lembrar.

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Zheng He foi um grande explorador chinês do século XV. Sob seu comando, o império da China chegou a praticamente todos os cantos do mundo. Esta seção é inspirada nele e te convida a explorar ainda mais a China.

Nacionalismo chinês: publicamos no nosso site um artigo exclusivo do sinólogo brasileiro Daniel Vasconcelos sobre as origens do nacionalismo chinês. Está imperdível e vale ler tomando um bom cafezinho.

Aqui é hip hop, bebê: a dica musical da semana vem da junção de duas diásporas diferentes, a taiwanesa-australiana Dizzy Dizzo e o taiwanês-americano ØZI. Aumenta o som!

Podcast: a segunda temporada do podcast Technology da Bloomberg é focado na ByteDance, empresa do aplicativo TikTok, e seu fundador Zhang Yiming.

Sci-fi: no início do mês, o Relampeio Festival teve uma mesa com Regina Kanyu Wang sobre mulheres na ficção científica chinesa. Ficou registrado no YouTube.

A saúde é tech: a consultoria Deloitte publicou um relatório sobre a digitalização em hospitais chineses, como diagnósticos e consultas online. A pandemia acelerou a prática e tem tudo para dar certo com o crescente apoio governamental.

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Em discurso na noite de ontem na cerimônia de entrega dos Oscars, Chloé Zhao recitou os versos 人之初,性本善 (rén zhī chū, xìng běnshàn), do poema 三字经. “As pessoas, ao nascer, são inerentemente boas.”
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