Edição 168 – A “prosperidade comum” e o futuro da China
O bolo cresceu. É hora de dividir? Quando anunciou o movimento de abertura e reforma, Deng Xiaoping falou que primeiro era preciso enriquecer e, depois, distribuir. Bem, após mais de três décadas, Xi Jinping fala agora sobre a necessidade de uma “prosperidade comum” (共同富裕 – gòng tóng fù yù) ou “prosperidade para todos”. A declaração foi feita por Xi na semana passada, em uma reunião da Comissão Central de Finanças e Relações Econômicas, reacendendo o debate sobre diminuição da desigualdade. O tema gerou uma série de debates sobre a criação de taxas para grandes fortunas. Exemplo disso é um texto publicado por Li Shi e Yang Yixin, da Universidade de Zhejiang, no jornal estatal Economic Daily, como a Caixin cita aqui.
Tomando a dianteira – e temendo novas reprimendas regulatórias – a Tencent se antecipou e anunciou um fundo de 50 bilhões de renminbi (cerca de R$ 41,6 bi) para promoção de prosperidade comum, como conta o South China Morning Post aqui. Menos de uma semana depois da fala de Xi, são muitas as especulações sobre o que vai acontecer daqui para frente. Nesta reflexão, o SupChina questiona se seria o fim do capitalismo na China. Já Bill Bishop se mostra reticente sobre o otimismo ou mesmo as expectativas geradas sobre uma sociedade mais igualitária. A Caixin, por sua vez, fez um texto longo no fim de semana sobre o tema. Mas, se você se interessa pela pauta, indicamos acompanhar a pesquisadora Yuen Yuen Ang. Recentemente ela fez um fio sobre o tema, com base em debates de seu livro mais atual, “China’s Gilded Age”.
Você aceita os termos e condições? Na sexta-feira (20), foi aprovada a nova lei de proteção de dados chinesa, cujo primeiro rascunho apareceu em outubro de 2020. A Lei de Proteção de Informações Pessoais (Personal Information Protection Law, em inglês, ou PIPL) entra em vigor no próximo 1º de novembro. Em consonância com outras legislações ao redor do mundo (como a GDPR, na Europa, e a LGPD, no Brasil), a PIPL foca em minimizar a coleta de dados pessoais por empresas privadas. É possível conferir o texto original (em mandarim) e a tradução para o inglês feita pelo projeto DigiChina de Stanford.
A PIPL não existe sozinha, como já falamos aqui; ela vem acompanhada de uma estrutura de novas leis sobre coleta, armazenamento e gestão dos dados de consumidores. As empresas (estrangeiras também) agora precisam deixar claro seus objetivos ao pedir informações e coletar apenas o necessário para a realização do serviço, por exemplo. A PIPL deixa em aberto algumas questões de coleta de dados pelo governo para situações específicas, o que foi alvo de críticas, como apareceu nessa matéria do Gizmodo. Um fio no Twitter do China Law Translate também dá um resumo geral e uma breve análise sobre a questão. Para um resumo mais detalhado, vale ver esse link do Future of Privacy Forum.
Aproveite e passe um cafezinho para ouvir a conversa no último episódio do podcast NüVoices, em que a pesquisadora Lotus Ruan explica o cenário das políticas e regulações para o setor de tech na China. Para ir além, vale ler essa entrevista com o renomado Zhou Hanhua, do Instituto de Direito da Academia de Ciências Sociais da China. Zhou fala sobre os seus mais de 15 anos de trabalho para a criação da lei. Já apareceu aqui na newsletter, mas tem essa ótima discussão do Data Privacy Brasil com Sofia Chang (Universidade de Pequim), Larissa Chen (UERJ) e Luca Belli (CTS-FGV) sobre o tema.
Do lixo ao luxo? Antes conhecida pela intensa exploração de carvão, a Região Autônoma da Mongólia Interior dá um salto rumo à transição energética e anuncia um megaprojeto de produção de hidrogênio verde. O hidrogênio é visto como um novo petróleo e fundamental no processo de neutralidade de carbono quando é do tipo verde (produzido a partir de energias renováveis). Como relatado pela Bloomberg, a ideia é produzir 66.900 toneladas de hidrogênio verde por ano, tornando-se um dos maiores projetos do tipo no país. Investidores ficaram animados no mercado de ações.
A China é quem mais investe em energia renovável no mundo e já é hoje a maior produtora global de hidrogênio com fins energéticos. Tamanha proeminência não veio do nada: já em 2014, o Conselho de Estado colocou o hidrogênio dentre as 20 áreas prioritárias de inovação no Plano de Ação Estratégico de Desenvolvimento Energético de 2014-2020.
Congestão portuária continua a preocupar. Surtos da variante delta do coronavírus levaram autoridades locais a fecharem mais portos no litoral chinês. Há algumas semanas, contamos por aqui sobre o caso do porto de Yantian, que também passou por isso e já voltou a operar normalmente. Agora o porto de Ningbo, o terceiro mais movimentado do mundo, e instalações portuárias em Hong Kong, Shanghai e Xiamen também tiveram suas atividades parcialmente interrompidas após funcionários terem sido diagnosticados com Covid-19. O resultado é um aumento no congestionamento de navios e no valor de fretes internacionais, como reporta a Al Jazeera.
Em tempo: nesta segunda-feira (23), o PCCh advertiu mais de 25 mil servidores públicos (aposentados e da ativa) da cidade de Hangzhou, província de Zhejiang, por possíveis conflitos de interesse devido aos seus laços com empresas locais, noticiou o Financial Times. A cidade é sede de importantes empresas de tecnologia, dentre elas a Alibaba, e a medida se insere no contexto de crescentes restrições ao setor. A advertência do PCCh veio dois dias após Zhou Jiangyong, líder do partido na cidade, ter sido preso por corrupção, e se estende também às famílias dos servidores.
Botando ordem na casa? Novas diretrizes de investimento do governo chinês podem tornar os aportes em infraestrutura da Iniciativa Cinturão e Rota mais verdes ao desvinculá-los dos padrões ambientais de países anfitriões, como noticiado pelo China Dialogue. Por muito tempo, empresas chinesas se baseavam nas leis e orientações ambientais dos países onde investiam, mas com frequência essas práticas estavam abaixo de padrões internacionais de sustentabilidade — principalmente em países do sudeste asiático, como Laos e Indonésia. Dentre os pontos de destaque, há o apelo para que empresas chinesas aprofundem as relações com governos, mídias e ONGs ambientais locais, deem prioridade para padrões ambientais internacionais e investimento em energias renováveis além das hidrelétricas. Essas últimas são alvo de crescente escrutínio por ONGs internacionais por seus impactos no meio ambiente, comunidades locais e violações de direitos humanos.
As novas medidas não são vinculantes, o que é apontado por alguns especialistas como um problema. Mas isso não significa que elas não impactarão as estatais chinesas que investem no exterior: o sucesso político da agenda ambiental do país também depende de como suas grandes empresas vão se portar para além de suas fronteiras. Um bom incentivo seria mais financiamento verde por parte dos maiores bancos de desenvolvimento do país, peça fundamental para virar a chave da sustentabilidade dos investimentos chineses no exterior.
Aliás, a Iniciativa Cinturão e Rota será pauta da nossa próxima edição mensal, que sai no início de setembro. Fica a sugestão para você assinar, por R$15 ao mês e ajudar a manter o projeto.
Biden finalmente nomeou um embaixador para a China. O indicado é Nicholas Burns, diplomata aposentado e professor na Kennedy School of Government de Harvard. A indicação de alguém com experiência em negociações e diplomacia foi vista como positiva para reduzir algumas das tensões entre China e EUA, como mostra esta matéria da Reuters e esta da estatal China Daily. A vaga, que estava desocupada desde outubro do ano passado, era normalmente preenchida por indicações políticas. Ainda é necessária a confirmação pelo Senado.
O embaixador da China para os EUA, Qin Gang, foi indicado há menos de um mês, como falamos aqui. Qin tem sido menos “lobo guerreiro” e mais amigável, buscando fortalecer relações paradiplomáticas, como conta a matéria do South China Morning Post.
Agora vai: Alberto Fernandéz, presidente da Argentina, deu sinal verde para construção de uma usina nuclear com tecnologia e financiamento da China, como escreve Fermín Koop para o Diálogo Chino. Depois de um vaivém que data da gestão de Maurício Macri (2015-2019), a usina deve ficar pronta até 2028 e 85% de seu custo será financiado pelo banco chinês ICBC. Como ocorre na maioria das plantas nucleares na China, a usina que será localizada na província de Buenos Aires fará uso da tecnologia Hualong.
Segurando a onda da fandom? A recente prisão do ídolo sino-canadense Kris Wu após acusações de estupro chamou atenção não só por vermos uma pessoa famosa sofrendo consequências por atos criminosos. Como comentamos na semana passada, há uma especulação de que essa pode ser a chance do governo chinês reduzir a influência de celebridades, especialmente aqueles da chamada idol culture. Há uma verdadeira indústria por trás de grandes ídolos da música, uma realidade bastante famosa no Japão e Coreia do Sul. Esta matéria do The New York Times oferece mais contexto, falando da preocupação das autoridades com a influência sobre os jovens chineses. Já havíamos contado aqui sobre o caso da compra excessiva de iogurtes para apoiar celebridades em um reality show. Lillian Li escreveu um pouco sobre essa história e a cultura de fãs, analisando a situação atual neste fio.
Em meio ao caso de Wu, uma série de celebridades chinesas compareceram a uma sessão de treinamento em ética em Pequim, em julho. O South China Morning Post narra sobre a oficina de dois dias, que incluiu aulas sobre ética e legislação, mas também história do Partido Comunista da China.
Um país, dois sistemas. O slogan usado para designar a relação de Hong Kong com a China continental ganhou outro uso na semana passada. Causou indignação o fato de a atriz australiana Nicole Kidman ter sido dispensada de cumprir quarentena para entrar na cidade. De acordo com as autoridades, ela e mais cinco pessoas foram autorizadas a viajar a Hong Kong para a gravação de uma série produzida pela Amazon, chamada “The Expats”. Assim como a China continental, Hong Kong adota medidas restritivas para entrada de pessoas de outros territórios, exigindo uma quarentena de 21 dias em hotéis pré-definidos — isso se cumpridos os pré-requisitos para acesso ao território. O ministério responsável pela liberação da atriz e de sua equipe defendeu a exceção dizendo ser um equilíbrio entre o controle da Covid-19 e uma ajuda à atriz de Hollywood. A internet, claro, não perdoou e o tema virou meme.
A censura vai ganhar espaço no mundo das tatuagens? Assim como em outros lugares, a percepção da sociedade chinesa sobre tatuagem mudou ao longo do tempo. Os desenhos têm sido cada vez mais vistos como uma forma de arte, especialmente entre os mais jovens e em cidades como Pequim, Shanghai e Hong Kong. Mas este texto do SupChina especula se a censura — que atinge várias outras formas de expressões artísticas no país e chegou até ao popular karaokê — pode chegar ganhar mais espaço nas tatuagens, que hoje já costumam ser borradas em programa de TV, por exemplo. Em junho, o Sixth Tone publicou um texto sobre o fechamento de um estúdio por ver irregularidades em tatuar menores.
Quando a China atinge a imunidade coletiva contra a Covid? O mundo inteiro quer saber quando estaremos imunes à Covid. No caso da China, que adota tolerância zero ao vírus, as especulações não são diferentes. O principal especialista em doenças respiratórias no país, Zhong Nanshan, disse na sexta-feira (20) que esse tão sonhado patamar pode ser alcançado se o país conseguir vacinar 80% de sua população até o fim do ano.
O especialista considera a possibilidade de combinações de vacinas diferentes e mesmo a aplicação de uma terceira dose, conforme falamos aqui. Mas ele não quis comentar se esse cenário considera a manutenção das fronteiras fechadas. Mesmo com controle rigoroso e exigência de quarentena de 21 dias para as poucas pessoas autorizadas a entrar em território chinês, o país enfrenta dificuldades em conter a variante Delta. Especialistas têm levantado dúvidas se o país conseguirá se manter isolado, mas poucos acreditam em uma reabertura até pelo menos meados de 2022.
Para atualizar a playlist: a New Music, coluna mensal do Radii, traz as músicas lançadas no verão chinês que estão bombando, do punk ao hip hop. Você pode ouvir todas no próprio site do Radii.
A indústria editorial: este texto do China Story faz um apanhado sobre o mercado editorial na China do passado ao presente. Vale um cafezinho para ler.
Podcast(s): recomendamos relatos pessoais de uigures em dois podcasts. Neste primeiro, na The Atlantic, a jovem filha de um poeta conta como é sua vida nos EUA após ter deixado Xinjiang. Já neste aqui, com relato anônimo, há um depoimento sobre como é ser uma mulher uigur.
Aos fatos: o órgão responsável pela administração do ciberespaço na China decidiu esclarecer alguns boatos que se enquadram como niilismo histórico, e o China Digital Times traduziu o top 10 e comentou cada um deles. Você não vai acreditar no número 7!
Acadêmico: professores da UFRGS, Luiza Peruffo e André Cunha debateram a possibilidade de uma moeda digital chinesa e o domínio do dólar enquanto moeda internacional. Disponível no YouTube.
Documentário: uma nova produção chinesa (“After the Rain”) de Fan Jian conta a história do trauma de famílias que perderam filhos no terremoto de Wenchuan em 2008. Veja o trailer. Fan aborda temas sociais nos seus filmes, como em “My Land”, de 2016, sobre desapropriação de terras.
Decolonizando as Relações Internacionais: já pensou em entender a China a partir do olhar de pesquisadores de lá? Em cinco capítulos, o “How China Sees the World” (2019) mostra o que os acadêmicos chineses pensam sobre os assuntos mais quentes das relações internacionais.