A ascensão chinesa nas operações de paz da ONU
Crédito da imagem: “MONUSCO peacekeepers – Last line of defense near Goma. Photo MONUSCO” by MONUSCO is licensed under CC BY-SA 2.0
Por Augusto Gabriel Colório*
Ao longo dos anos 2000, a China passou a ser um ator decisivo nas operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU). Isso se deve ao seu poder político como membro-permanente do Conselho de Segurança, que permite que o país possa decidir os principais aspectos dos mandatos das operações, além de sua importância financeira para essas atividades¹. Ao mesmo tempo que os chineses têm grande importância em missões de paz no novo século, a política externa do país passou por mudanças profundas desde sua inclusão na ONU em 1971. Como República Popular da China, os seus primeiros anos como membro do sistema ONU foram marcados pelo isolamento. O país se absteve das votações e não contribuiu com o orçamento anual dessas atividades.
Durante a administração de Deng Xiaoping, a China passou por uma fase de ruptura em relação à política externa do período maoista, bem como flexibilizou seu entendimento sobre o papel da ONU em atividades que pudessem relativizar a soberania do estado anfitrião. Foi nesse contexto que a China decidiu, pela primeira vez como membro permanente do Conselho de Segurança, apoiar a extensão do mandato da missão da ONU para o Chipre, em 1981. Impulsionada pela política de reforma e abertura, ao longo daquele ano, Pequim participou de várias votações do Conselho de Segurança apoiando resoluções do órgão referentes às operações de paz, além de dar início às suas contribuições ao orçamento desse tipo de atividade.
Uma mudança de postura
Contudo, desde 2004, a China apresenta uma mudança exponencial na sua participação em missões de paz das Nações Unidas². Nesse contexto internacional mais multipolar e de ascensão do seu status internacional, o envio de soldados e policiais chineses para operações mais do que triplicou. Por algum tempo, a mudança na postura chinesa foi atribuída como uma busca pela securitização de recursos naturais, sobretudo no continente africano, tendo em vista a expansão de seus interesses econômicos e comerciais. No entanto, através de um exame mais detalhado é possível compreender que a participação da China nas operações de paz faz parte de uma mudança na política externa chinesa que, devido ao seu novo status internacional, tem avançado nas estruturas de governança global promovendo sua visão de ordem mundial.
Como apontam autores como Zurcher, no contingente total da ONU, que hoje é em torno de 77 mil servidores em missões de paz, é improvável que a China conseguisse fazer valer seu interesse em detrimento do que foi definido pelo mandato do Conselho de Segurança, já que os capacetes azuis chineses compõem por volta de 2% desses números. Além disso, o histórico da China de envio de pessoal para missões de paz também não indica uma relação direta entre o envio de pessoal e seus interesses econômico-comerciais. Por outro lado, a presença chinesa em operações de paz está de acordo com a distribuição regional das forças de paz da ONU, sugerindo que a China envia soldados a partir dos pedidos da própria ONU, ao invés de interesses regionais específicos. Sendo assim, nos casos dos Sudão e da República Democrática do Congo, países com os quais a China tem boas relações econômicas, seu envio de tropas respeitou a proporcionalidade dos envios da ONU. Nos casos do Saara Ocidental, do Mali e da Libéria, as contribuições chinesas respeitaram a distribuição regional da ONU, apesar de seus interesses econômico-comerciais limitados.
Outro argumento comumente usado para explicar o envio de soldados chineses para operações de paz é o de exposição a ambientes de conflitos armados, já que a China não participa de uma guerra desde 1979 durante o conflito militar com o Vietnã. Nesse sentido, essas operações possibilitam à China fazer uso de seus equipamentos, testar novas tecnologias militares e que seus militares se beneficiem de conhecimentos de outras forças armadas. Ainda que as operações de paz possam servir para o treinamento de militares chineses, esse não é um fator decisivo para explicar o engajamento chinês, já que no caso de um conflito de larga escala envolvendo a China esse tipo de treinamento não seria o mais adequado. Além disso, quando analisados os países que mais enviam soldados para operações de paz, percebe-se a predominância de países em desenvolvimento, com forças armadas pouco desenvolvidas, e não de soldados de grandes potências como a China. Logo, embora seja um aspecto do engajamento de manutenção da paz das forças armadas chinesas, esse não é um fator central decisivo para que a China participe em uma operação de paz.
Motivações para a participação
Sendo assim, o que explicaria o crescente interesse da China, sobretudo desde 2004, por essas operações? Como já mencionado, a ascensão chinesa nas operações de paz da ONU ocorreu em um contexto em que o país ascendeu internacionalmente. Em 2008, em razão da crise econômica mundial, parte da elite dirigente na China já afirmava a necessidade de uma mudança na política externa que fosse mais ativa.
A chegada de Xi Jinping em 2013 foi marcante nesse sentido, pois concretizou a mudança na postura do país para com as suas relações internacionais. Consequentemente, a China abandonou o caráter reativo da sua política externa, adotando uma postura ativa e que correspondesse ao novo status do país.
A chegada de Xi Jinping em 2013 foi marcante nesse sentido, pois concretizou a mudança na postura do país para com as suas relações internacionais. Consequentemente, a China abandonou o caráter reativo da sua política externa, adotando uma postura ativa e que correspondesse ao novo status do país.
A participação chinesa nessas atividades deve ser entendida a partir desse cenário, no qual os interesses chineses se tornam globais e essas atividades passam a prover uma série de ganhos ao novo status internacional da China, como, por exemplo, de garantidor da ordem e da segurança internacional. Além disso, a posição crescente da China fez com que muitos temessem que a ascensão chinesa pudesse causar algum tipo de conflito internacional. Por isso, as operações de paz passam a servir como um instrumento da política exterior chinesa de figurar como uma potência em ascensão responsável e pacífica em relação à arquitetura internacional do pós-guerra, como defendido por Richardson.
Além do fortalecimento da influência internacional que a participação da China em operações de paz garante ao país, essas atividades também permitem que Pequim possa contrapor as recentes intervenções promovidas pelo eixo euro-estadunidense com seu entendimento sobre a superação de crises. Por exemplo, na medida em que as intervenções lideradas pelos EUA, como nos casos do Afeganistão, do Iraque e da Líbia, acabaram não produzindo o resultado esperado, a China tem aproveitado essas atividades para reforçar sua retórica de uma agenda de construção da paz. Logo, o país tem enfatizado a necessidade de respeitar o interesse soberano de cada nação e reiterado que cada nação deve encontrar seu caminho de desenvolvimento sem importar modelos prontos, como o próprio presidente Xi Jinping declarou. Esse modo de ação vai contra os tradicionais interventores que sustentam a necessidade de estabelecer sistemas políticos semelhantes ao modelo liberal ocidental — realização de eleições, estabelecimento de sistemas multipartidários, fortalecimento das liberdades civis e forte participação da sociedade civil — para superação das crises locais. Logo, diferentemente do eixo euro-estadunidense, como apontado pelo International Crisis Group, a China se destaca ao promover o desenvolvimento econômico por meio de obras de infraestrutura, da ampliação das capacidades estatais e da ajuda humanitária e ao valorizar os interesses das lideranças locais e regionais.
¹ Em 2017, a China tornou-se o segundo maior financiador das operações de paz. Durante o período de 2020-2021, a China é responsável por 15,21% do plano orçamentário das operações de paz, em segundo lugar, atrás somente dos EUA que correspondem a 27,89%.
² O aumento importante de enviados chineses em 2004 se deu no contexto de envio de mais de 600 combatentes para a Missão das Nações Unidas para a Libéria, triplicando o número em relação a 2003. Já em 2008, a China tornou-se o maior contribuinte de pessoal em operações de paz entre os 5 membros do Conselho de Segurança.
*Augusto Gabriel Colório é internacionalista formado na Unisinos (RS) e possui mestrado em Conflito e Segurança Internacional pela Universidade de Kent (UK).