Edição 174 — Apagão das redes (de energia chinesas)
Um apagão ameaça a China? A véspera de um dos maiores feriados chineses, o 国庆 Guoqing (1º de outubro, quando é celebrada a fundação da República Popular da China), foi marcada pelo temor de uma crise energética no gigante asiático. O tema teve tanta repercussão que nem esperamos esta edição para falar sobre ela, e incluímos o assunto em nossa última edição do cafezinho. Tudo começou com algumas falhas, sobretudo no nordeste do país, justamente onde as temperaturas já estão mais baixas com a chegada do inverno. Luzes de trânsito começaram a falhar, fábricas tiveram que reduzir a produção e casas tiveram blecautes e racionamento. A reação das autoridades foi de garantir o abastecimento residencial “a todo custo”. Em textos publicados no Global Times, o governo central tentou mostrar que está preparado para enfrentar a baixa energética. Esta reportagem do Yicai Global credita uma fonte sigilosa para dizer que as usinas nucleares estão trabalhando a todo vapor.
Diante disso, especialistas tentam explicar por que está faltando energia. Este texto de opinião da Caixin fala sobre um desequilíbrio entre oferta e demanda. Este texto do El País (em português) faz um bom apanhado das causas que levam a esta situação: escassez de carvão, duplo-controle do setor energético e aumento da atividade econômica, sobretudo industrial. Ainda que o governo de Xi tenha se comprometido a reduzir as emissões de carbono, a principal fonte de energia na China ainda é o carvão, matéria-prima em escassez no mercado. Se você quiser se aprofundar ainda mais no assunto, o Pekingnology fez um apanhado de perguntas e respostas sobre o tema. O Lantau Group publicou um compilado sobre a volatilidade do setor elétrico da segunda maior economia do mundo e, na Folha, Tatiana Prazeres associa a crise energética na China a questões climáticas.
Biossegurança é pauta. Xi Jinping anunciou em reunião de estudos do Politburo que biossegurança é um tema de preocupação para a China. Em seu discurso, o líder afirmou que o país precisa priorizar a segurança em laboratórios que lidam com patógenos perigosos. Segundo o presidente, o tema da biossegurança “afeta e é capaz de remodelar o mundo”. Ainda que não tenha ficado muito claro por que Xi decidiu tratar deste tema agora, vale lembrar que, desde o surgimento da Covid-19, a China passou a ser acusada por opositores, em especial por Donald Trump, de ser responsável pelo vírus. Embora inspeções da OMS e de cientistas indiquem que é improvável a hipótese do coronavírus ter como origem um vazamento de laboratório, e ainda que as incertezas sobre sua origem exijam mais estudos, disputas políticas volta e meia motivam a retomada do assunto. Em nossa edição 156, recomendamos o texto da cientista YangYang Cheng sobre como a pauta de biossegurança afetaria o mundo pós-Covid. Vale reler.
Quem acha que tudo é consenso no governo Xi está precisando se atualizar nas fofocas. Neste texto de Willy Wo-Lap Lam para a Jamestown Foundation, o autor traz uma série de questões recentes que alimentaram a oposição ao atual líder chinês. A divulgação da política de “prosperidade comum”, por exemplo, que já apareceu por aqui, causou um rebuliço entre a elite do país e trouxe discussões polêmicas online.
Outro caso foi a sentença do ex-vice-ministro da Segurança Pública, Sun Lijun, trazido por esta edição da Asia Sentinel. A investigação sobre Sun começou em abril de 2020, no que o pesquisador Guoguang Wu considera como a terceira onda de expulsões da campanha anticorrupção de Xi. Segundo a Asia Sentinel, as acusações contra o ex-vice-ministro (que incluem rebelião) demonstram que ele estaria no centro de uma disputa de facções entre Xi e os apoiadores do ex-presidente Jiang Zemin. Sun estava responsável pelo departamento que lidou com os protestos em Hong Kong (cuja resposta inadequada, na leitura de Pequim, deixou a situação da cidade mais volátil), e foi também acusado de abandonar seu posto no início da resposta à epidemia em Wuhan.
Xadrez eleitoral. Há duas edições comentamos por aqui sobre as eleições ocorridas em Hong Kong. Na ocasião, foram escolhidos representantes para o Conselho Eleitoral que verificará candidatos que concorrerão a cargos no Conselho Legislativo em dezembro — além dos candidatos, mesários e demais trabalhadores envolvidos também passarão por crivos políticos. Além dessa triagem e de indicarem seus próprios representantes para ocupar o Legislativo, os membros desse Conselho também elegerão a próxima pessoa a assumir a posição de Chefe Executivo da cidade, cargo atualmente ocupado por Carrie Lam.
Na última segunda-feira (27) Lam deu um spoiler, durante entrevista a uma rádio, de que deve fazer um anúncio importante neste mês de outubro. Especula-se que ela vá confirmar sua campanha de reeleição.
Liberdade de imprensa? Seis ex-jornalistas do jornal Apple Daily tiveram seus casos sob a Lei de Segurança Nacional encaminhados na sexta-feira (1) para a Alta Corte de Hong Kong. Isso significa que suas penas podem chegar à prisão perpétua. Dias antes, o governo local havia pedido o fechamento do grupo Next Digital, companhia de comunicação dona do Apple Daily, que já estava em processo de liquidação desde setembro. O jornal, de inclinação fortemente anti-Pequim, encerrou suas operações em junho, após a prisão de seu dono Jimmy Lai e o congelamento dos fundos necessários para sua operação.
O vazamento dos Pandora Papers no final de semana também impactou a China. Diversas empresas chinesas abriram contas no exterior, em bancos offshore, como conta David Barboza para o The Wire China. Entre políticos, tem também dois ex-líderes de Hong Kong, Leung Chun-ying e Tung Chee-hwa. Ambos são vices na Conferência Consultiva Política do Povo Chinês. Leung postou no Facebook (antes do site cair) negando as acusações e criticando os jornalistas que publicaram a matéria. Vamos seguir acompanhando.
Rivalidade responsável? No último fim de semana, a China fez sobrevoos em espaço aéreo próximo a Taiwan com cerca de 80 aeronaves militares, um número recorde, segundo noticiou o The New York Times. Apesar de não representarem uma ameaça iminente, o Departamento de Estado dos EUA reclamou e pediu cautela a Pequim para evitar “erros de cálculo”. Poucos dias antes, China e EUA realizaram conversas de alto nível entre representantes de suas forças armadas. Como reportou o SCMP, o conteúdo das reuniões, que duraram dois dias, não foi divulgado, mas os dois países frisaram que os canais de comunicação estão abertos, apesar (ou por causa) das diferenças. Essa foi a segunda reunião do tipo desde que Joe Biden assumiu a presidência dos EUA. A anterior ocorreu em agosto, para tratar da situação no Afeganistão, que também foi tema de um telefonema do Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, com lideranças da OTAN, no fim de setembro. Nessa ligação, as partes concordaram com a necessidade de estreitar o diálogo sobre a questão afegã.
No front comercial, Katherine Tai, Representante dos EUA para Comércio, fez um discurso ao think tank Center for Strategic and International Studies (CSIS) nesta segunda-feira (4) em que detalhou, pela primeira vez, a política comercial do governo Biden para com a China. A íntegra de sua fala pode ser vista aqui ou lida aqui. Em resumo, os EUA devem dar seguimento aos acordos bilaterais firmados no governo Trump e buscar maior apoio multilateral. Em entrevista na semana passada, Tai já antecipara parte do anúncio ao afirmar que a política comercial trumpista seria usada como base para decidir os próximos passos da relação bilateral. O governo trocou, mas a disputa comercial continua.
Como se deu acordo sobre Meng e os Michaels? Na semana passada, contamos aqui que, depois de quase três anos, chegou ao fim a saga envolvendo a prisão dos canadenses Michael Spavor e Michael Kovrig e da chinesa Meng Wanzhou, chefe financeira e herdeira da Huawei. Voltamos ao assunto com a confirmação por parte de Jen Psaki, porta-voz da Casa Branca, que o tema esteve entre os assuntos que marcaram o telefonema do presidente Biden ao líder chinês no mês passado, mas que não houve negociação. Esta reportagem do South China Morning Post traz ainda mais detalhes sobre como o caso chegou ao fim, com o desembarque de Meng em tom triunfal na China, na semana passada.
Não deve acabar tão cedo a exigência de quarentena para quem chega à China em voos internacionais. Tanto chineses quanto estrangeiros vindos do exterior em breve serão deslocados direto do aeroporto para centros de isolamento em construção no país, que também devem ser usados para a contenção de surtos pontuais do coronavírus. O primeiro desses centros será em Guangzhou, no sul da China, com 5.000 quartos, alimentação e monitoramento médico totalmente automatizados, conforme reportou a CNN. A medida deve diminuir a exposição da população local a passageiros infectados, os quais hoje fazem suas quarentenas em hotéis — que não têm as instalações sanitárias mais adequadas — espalhados pelas cidades que recebem voos internacionais. A adoção desses centros permanentes indica que a China não vê um fim próximo para a pandemia de Covid-19, segundo reportagem do SCMP. O que será que turistas vão achar?
Precisamos falar sobre pegar lula. Não é o ex-presidente brasileiro e nem a série coreana fazendo sucesso no streaming. Uma longa matéria da Associated Press apresenta o caso da pesca de lulas em águas latino-americanas por navios chineses. Acompanhando um barco de conservacionistas (o Ocean Warrior), os jornalistas observaram de perto a atuação de uma frota de 30 embarcações com bandeira da China, algumas das quais teriam desligado seus sistemas de identificação para evitar detecção. Os entrevistados criticam que a China estaria de certo modo exportando a sua má gestão da pesca excessiva, expandindo essas atividades em oceanos distantes significativamente. A matéria comenta também a resposta de Pequim, que diz ter zero tolerância para a atividade ilegal e que impõe moratórias na pesca de lulas em alto mar.
A pesca ilegal realizada por embarcações com bandeiras da China aqui nas águas da América Latina é algo que aparece aqui na newsletter desde 2020, inclusive quando mais de 300 navios entraram no território das Ilhas Galápagos, causando indignação dos equatorianos.
Falando em América Latina, como ela é afetada pela crescente rivalidade entre China e EUA? Esse é o tema de uma análise publicada no jornal Página Siete, que argumenta que a competição entre Pequim e Washington abre espaço para barganha por parte dos países latino-americanos. Isso permitiria negociar a partir de uma posição mais favorável para impulsionar o desenvolvimento local e demandar transferência de tecnologias, sejam elas estadunidenses ou chinesas.
A gente já sabe faz tempo que jogos não são livres de política. Assim, não surpreende que a indústria de jogos na China siga sob escrutínio, como confirmado com o vazamento, na última semana, de um memorando de treinamento interno da Administração Nacional de Imprensa e Publicações. A matéria de Josh Ye para o South China Morning Post mostra que as autoridades chinesas entendem que jogos de videogame são um tipo de arte e precisam demonstrar valores específicos e representações corretas da China. No memorando, aparecem comentários negativos sobre jogos com ambiguidade moral (por exemplo, poder jogar como vilão ou herói), modificação de fatos históricos, encorajamento de militarismo e colonialismo, e uso de símbolos religiosos. De maneira mais preocupante, ele também aponta a necessidade de sinalização de jogos em que o gênero de personagens não seja claro de imediato ou em que comportamentos considerados femininos sejam atribuídos a personagens masculinos, como detalha o autor da matéria neste fio.
Já apareceu por aqui a preocupação do governo e dos reguladores do país com o que enxergam como influências negativas na indústria do entretenimento, inclusive na aparência e comportamento de celebridades. E falando em regulação do espaço virtual, o analista Adam Ni e o acadêmico Henry Gao escreveram aqui sobre “civilizar o ciberespaço”, moralidade e controle político na China, a partir de um novo protocolo do governo central, traduzido para o inglês por Ni.
E ainda dá para ser legal na internet? Polarização no discurso online não é um problema só nos países ocidentais. Este texto traduzido pelo Reading the China Dream fala dessa questão no âmbito da juventude chinesa contemporânea. O texto dialoga com algumas questões que já apareceram aqui, como nacionalistas brigando com feministas.
O problema dos algoritmos enviesados é global. Um novo estudo da fundação chinesa Mana Data com apoio da ONU Mulheres mostra que pesquisas em mecanismos de busca como o Baidu respondem aos termos “CEO”, “engenheiro” e “cientista” (que em mandarim não têm gênero) com imagens de homens. A matéria do SCMP, de Phoebe Zhang, explora o fascinante tema. Muita gente da área de Inteligência Artificial e programação na China considera que não existe viés nos algoritmos, mas algumas empresas (como a Alibaba) já começaram a tomar providências.
Falando em lutar contra algoritmos, vale ler essa tradução do Jeffrey Ding (da ChinaAI) de uma matéria em mandarim sobre os jovens chineses tentando burlar a vida vigiada por essas fórmulas.
Qual o limite da tolerância zero contra a Covid? Que a China tenta manter sua política de não conviver com o coronavírus, já estamos mais que ligados – mas a eutanásia de três gatos em Harbin, no nordeste chinês, gerou espanto. O caso aconteceu após a tutora dos animais ter testado positivo para a doença e ter deixado sua residência para tratamento em um hospital. Ela teria deixado comida e água suficientes para os bichinhos para o período em que estaria fora, além de ter pedido que seus vizinhos ficassem de olho nos animais. Porém, um agente comunitário entrou na residência da paciente e por duas vezes submeteu os gatos a testes para Covid-19, cujos resultados teriam sinalizado que os animais estariam com o vírus. Apesar da tutora não ter assinado o termo de consentimento necessário, os animais foram mortos. O caso gerou forte polêmica nas redes sociais chinesas diante também da reação da tutora. Já falamos aqui que os felinos contam com forte popularidade entre os chineses. Para conter a animosidade e as críticas, o Global Times chegou, inclusive, a publicar um texto opinativo dizendo que a China cuida melhor dos gatos do que alguns países do Ocidente cuidam de vidas humanas com Covid-19. Até o momento, cientistas chegaram à conclusão de que são muito baixas as chances de felinos transmitirem a doença para humanos.
Zheng He foi um grande explorador chinês do século XV. Sob seu comando, o império da China chegou a praticamente todos os cantos do mundo. Esta seção é inspirada nele e te convida a explorar ainda mais a China.
Olá, alô, oi: o The World of Chinese fez uma compilação das diversas saudações usadas na China para além do batido “nǐhǎo” (你好). Você conhece todas elas?
Jesus com características chinesas: veja estas belas ilustrações que missionários do início do séc. XIX, em Shanghai, usavam para ensinar a Bíblia.
Calendário vintage: no início do século XX, antes dos famosos pôsteres de propaganda, os pôsteres-calendários foram tendência artística na China. Conheça mais sobre os yuefenpai neste texto do Snow Pavillion.
Resistência: este texto do The Diplomat conta como, apesar de muitas dificuldades, as comunidades LGBTQIA+ têm resistido em países do leste asiático, entre eles, a China.
Uma deidade mulher: o Sixth Tone deu início a uma série de histórias sobre Quanzhou, cidade portuária que integrava a rota da seda marítima, com um texto que fala sobre a adoração de uma deusa, Li Mo ou Mazu. Confira!
Para sempre: esse curioso artigo da Quartz discute sobre o uso do prefixo “Ever” nos nomes em inglês de marcas chinesas.
Um pouco mais acadêmico: o artigo de Olivia Bulla e José Renato Peneluppi sobre a gestão de crise do governo chinês frente à pandemia foi premiado na Conferência Internacional sobre Organização Pública. Eles argumentam que o modelo político foi essencial para a contenção. O que você acha?