Edição 191 – Identidade de atletas é pivô de discussão sobre EUA e China
China dá aval para remédio da Pfizer. Enquanto apenas vacinas nacionais contra Covid-19 são autorizadas no país, a China abriu caminho para uso condicional do primeiro medicamento contra a doença. No sábado (12), o órgão responsável pelo uso de remédios no país disse que a droga Paxlovid, da fabricante estadunidense Pfizer, poderá ser usada para tratamento de adultos de alto risco em casos de Covid-19 considerados de gravidade média a moderada. O anúncio feito pelo departamento, como mostra o Sixth Tone, inclui pessoas com casos pré-existentes de diabetes e doenças cardiovasculares. Estudos iniciais mostram que o uso do medicamento pode reduzir em até 89% o risco de morte e hospitalização de pacientes com o vírus.
Por falar em Covid, a China não dá sinais de que vai abrir mão de sua política de tolerância zero à doença, o que deve manter as fronteiras do país fechadas por tempo indeterminado, na contramão do que têm feito países asiáticos de forte atração turística. Recentemente, Pequim anunciou que pretende manter o controle rigoroso da doença no país e que tem kits de testagem preparados para monitorar diariamente 51 milhões de pessoas num país que conta com uma população de 1,4 bilhão de habitantes.
Bem mais que zero. Com mais de 2 mil casos de Covid-19 confirmados nesta segunda-feira (14), Hong Kong quebrou novamente seu recorde de infecções diárias. Carrie Lam anunciou a criação de cinco forças-tarefa em conjunto com as autoridades da China continental, visando aumentar a capacidade de testagem, construir novas instalações para atendimento médico e isolamento de infectados e garantir a distribuição dos insumos necessários. Também foi anunciado que crianças a partir de três anos de idade poderão ser vacinadas com o imunizante da Sinovac. Embora a letalidade da Covid-19 no território até o momento não seja alta — 225 mortes no total, sendo três durante esta quinta onda —, o crescimento descontrolado no número de infecções causa projeções pessimistas para os próximos meses, colocando em questão a estratégia de “zero expandido” importada de Pequim por Lam.
Política do dedo-duro. Dando continuidade ao fechamento de cerco contra o ensino extracurricular nas escolas chinesas, o governo agora vai criar um mecanismo para aumentar a vigilância sobre as instituições que descumprirem as regras anunciadas em julho de 2021. Como mostra a Sixth Tone, o Ministério da Educação anunciou este mês que será criado um departamento para maior fiscalização e incentivo a denúncias de descumprimento das proibições. O governo disse, ainda sem detalhes, que os delatores serão recompensados.
Ainda nesta linha de medidas mais duras, o governo estendeu as proibições para o ensino médio, como conta esta reportagem da Bloomberg. O órgão fiscalizador impediu que instituições mantivessem ensino online durante o feriado do Ano Novo Lunar. O texto fala que a medida não deve estar restrita à data festiva, indicando que estudantes em fase de pré-universidade também terão restrições para aulas fora do currículo escolar.
Uma dívida por uma plantinha. Essa é a proposta de dois pesquisadores equatorianos para reduzir dívidas de US$ 5 bilhões (R$ 26 bilhões) do país sul-americano com Pequim, ao mesmo tempo em que promove a conservação da biodiversidade. Para quem não é familiarizado com a prática, as “trocas de dívida por natureza” existem desde a década de 1980 e consistem em reduzir — ou mesmo cancelar — dívidas soberanas de governos contanto que o valor seja redirecionado para projetos de conservação ambiental. Segundo os pesquisadores, o Equador poderia cancelar até 10% de sua dívida (altamente atrelada ao petróleo, como comentamos aqui) e reduziria o desmatamento em quase 50% caso o mecanismo fosse levado em consideração. Ainda segundo eles, a ideia é puro win-win para ambos os países: para o Equador, por motivos óbvios; e para a China, por reduzir a possibilidade de um calote e demonstrar seu comprometimento e liderança com a agenda ambiental global.
Unidos na comida apimentada. Lá em 14 de fevereiro de 1972, em plena Guerra Fria, o México normalizava relações com a República Popular. Em 1973, o presidente Luis Echeverría visitou Pequim, encontrando Mao e Zhou Enlai. Por isso, são comemorados hoje (14), os 50 anos do estabelecimento das relações diplomáticas entre México e China. Uma série de celebrações foram organizadas para 2022, com reflexões sobre lições e aprendizados para o México. Um novo policy brief do Wilson Center, pela pesquisadora Natalia Cote-Muñoz e o ex-embaixador mexicano Jorge Guajardo, cobre as relações da América do Norte (incluindo México) com a China. O atual presidente mexicano, Andrés Manuel Lopes Obrador, e Xi já se parabenizaram também. Mas é bom lembrar que as relações entre China e México andam tensas pela questão da exploração do lítio, mineral importante para a indústria, como conta esta matéria do El País. Obrador pretende criar uma estatal para a mineração, cuja maior participação no mercado mexicano hoje é feita pela chinesa Ganfeng.
Errata: em nossa newsletter, falamos que a viagem de Echeverría ocorreu em 1972, mas ela se deu um ano depois da formalização das relações diplomáticas.
Nada novo no front China x EUA. Mais de um ano após a posse de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos, a disputa comercial entre as duas maiores potências globais parece seguir no mesmo patamar. Na última semana, Pequim fez um apelo para que Washington retire com urgência tarifas criadas na gestão de Donald Trump, mas até agora não houve resposta. Como mostra o South China Morning Post, as negociações comerciais entre China e Estados Unidos parecem estar num “beco sem saída”, sem movimentações significativas de nenhum dos dois lados do tabuleiro. Este texto da Foreign Affairs traz uma análise sobre qual seria a estratégia de Washington em relação a Pequim.
Como a China vê a situação da Ucrânia? Enquanto diversos governos pediram que seus cidadãos e comunidade diplomática evacuem a Ucrânia em meio à tensão com a Rússia, o governo chinês fez um alerta mais sóbrio. Na última sexta (11), a embaixada da China em Kiev publicou uma nota no WeChat pedindo que os cidadãos nacionais elevem o grau de atenção em relação à segurança. A nota ainda dizia que “a atual situação de tensão entre a Rússia e a Ucrânia elevou as preocupações e têm surgido declarações inconsistentes entre si”. O que chamou atenção, como mostra este fio, é que o órgão chinês misturou no mesmo texto o conflito e a Covid-19 na Ucrânia, deixando a interpretação dúbia e sem que fique claro qual é mais preocupante no momento.
A tensão Rússia-Ucrânia ainda esteve presente nas conversas entre o ministro de Relações Exteriores chinês, Wang Yi, e seu contraparte holandês, Wopke Hoekstra, que postou no Twitter sobre o encontro. Como falamos na edição passada, o líder russo Vladimir Putin se reuniu recentemente com Xi Jinping em Pequim, na esteira da cerimônia de abertura da Olimpíada de Inverno.
Uma atleta e suas identidades. A Olimpíada de Inverno de Pequim segue ganhando destaque no noticiário político. O mais recente caso é o da esquiadora Gu Ailing 谷爱凌 (ou Eileen Gu, em inglês). Medalhista de ouro, a jovem de 18 anos tem sido bombardeada por questionamentos em torno de sua nacionalidade. Nascida na Califórnia, Gu decidiu em 2019 competir pelo país de sua mãe, a China, onde já era conhecida por ter seu rosto estampado em publicidade de diversas marcas nacionais. Ela ganhou os fãs por ser fluente em mandarim e, mais recentemente, viralizou por ter feito um comentário sobre liberdade na Internet na China, dizendo que VPN pode ser baixada por qualquer usuário na China, o que é falso. Prontamente surgiram memes e questionamentos sobre por que ela tem acesso ao Instagram, já que o aplicativo, assim como Facebook e Twitter, é bloqueado na China continental.
A decisão de Gu gerou críticas de diversas partes. Mas o que tem ressoado em reportagens sobre a atleta é o mistério que paira sobre sua nacionalidade oficial: a China não aceita dupla cidadania, mas não ficou claro se a esquiadora abriu mão de seu passaporte estadunidense. Questionada, Gu responde sempre com a mesma frase: “Nos Estados Unidos eu sou estadunidense e, na China, chinesa”, acrescentando que sua missão é promover a união dos dois países por meio do esporte.
Nem todo mundo teve a sorte ou a glória de Gu ao tomar a decisão de trocar a bandeira estadunidense pela chinesa. Beverly Zhu, ou Zhu Yi 朱易, tem sido alvo de comentários pesados e muita crítica na internet chinesa. Também nascida na Califórnia, de pais chineses, a jovem patinadora virou meme e tornou-se um dos assuntos mais comentados no Weibo depois de sofrer uma queda ao competir nos jogos. Diferentemente de Gu, Zhu não fala mandarim e este tem sido um dos pontos criticados pelos chineses, que questionam a identidade da atleta. As duas jovens não são casos isolados, e como mostram algumas reportagens, este é o caso de dezenas de competidores, como conta a NPR. O tema é alvo de um debate que vai além dos jogos. Alguns especialistas, inclusive, dizem que a China deveria rever sua política de não aceitar dupla nacionalidade, uma mudança que poderia trazer benefícios ao país, como o retorno de talentos e uma alternativa à crise demográfica.
Descanso é necessário. A saúde mental e física de trabalhadores da área de tecnologia ganhou novamente os noticiários na China. A gigante de vídeos Bilibili entrou em alerta após a morte de um funcionário do setor de moderação de conteúdo, como cobriu o China Digital Times. O falecimento do homem de 25 anos reacendeu o debate sobre o excesso de trabalho nas plataformas. Segundo um blogueiro (que recebeu notificação judicial da empresa), o funcionário teria trabalhado cinco turnos consecutivos de 12 horas durante o feriadão do Ano Novo Lunar, antes de colapsar com uma hemorragia no cérebro, conta o TechNode. A Bilibili nega, dizendo que ele trabalhou turnos regulares, mas prometeu contratar mais 1.000 moderadores e implementar um grupo de apoio. Durante finais de semanas e feriados, não é incomum que moderadores de conteúdo trabalhem mais horas, já que há maior produção de conteúdo por parte de influenciadores, a quantidade de funcionários é reduzida e o pagamento é maior por turno.
Quem mexeu no meu queijo? Não, não é sobre autoajuda, mas é digno de uma boa lida: a China é a maior importadora de laticínios do mundo, apesar de 92% de sua população adulta ser intolerante à lactose. Só em 2020, o mercado rendeu US$ 90 bilhões (R$ 472 bilhões) e é hoje o segundo maior do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. De acordo com um recente relatório da consultoria Daxue, os três principais produtos consumidos são leite, fórmulas para bebês e iogurtes. Os hábitos de consumo variam de acordo com a faixa etária e localização geográfica, mas, no geral, quanto mais globalizada for a cidade, maior será sua demanda pelos laticínios, como é o caso de Pequim e Tianjin. Chama atenção o crescimento das marcas nacionais, que andavam em baixa desde 2008 após o “Escândalo da Melamina”, quando cerca de 300 mil crianças ficaram doentes e seis morreram após a contaminação de uma fórmula para bebê.
Oh! My! God! A série estadunidense Friends voltou às plataformas de streaming chinesas na última sexta-feira (11). A alegria, no entanto, durou só até o segundo episódio da maratona, quando os fãs notaram cortes bruscos em um diálogo sobre a homossexualidade da personagem Carol. O assunto virou pauta nas redes sociais, onde acabou por ser censurado também. Desde 2016, o órgão regulador de mídia chinês proíbe “conteúdo vulgar, imoral e insalubre” em programas de televisão e filmes, o que geralmente significa o apagamento de temas LGBTQIA+. Embora Friends tenha sido exibido integralmente até sair do ar em 2018, o especial de 30 anos lançado no ano passado não escapou de cortes, como contamos aqui. Nesta nova edição da série, além da lesbianidade da Carol, também foram censurados diálogos de conteúdo sexual e até um globo terrestre.
Errata: em nossa newsletter, o parágrafo acima fez uso do termo “lesbianismo”. O uso do sufixo “ismo” é carregado de um tom pejorativo que não condiz com os valores da Shūmiàn 书面 , de modo que corrigimos o termo para “lesbianidade”.
Como comunicar o incomunicável? Em Ten Translations of Care, Mary Wang conta a história de como ela e sua família na China esconderam o diagnóstico de câncer terminal da avó para ela mesma. A história lembra o roteiro de A Despedida e mostra um pouco como chineses lidam com a morte, o câncer e as diferentes formas de mostrar amor e cuidado. Vale fazer um cafezinho (e prepare um lencinho também).
Zheng He foi um grande explorador chinês do século XV. Sob seu comando, o império da China chegou a praticamente todos os cantos do mundo. Esta seção é inspirada nele e te convida a explorar ainda mais a China.
Estrela da fama: quando O Tigre e o Dragão (2000) de Ang Lee estreou nos EUA, foi um sucesso indicado ao Oscar — mas um fracasso na China. As dificuldades de uma carreira em Hollywood que dialogue com audiências chinesas são o tema deste artigo no LitHub, trecho de um novo livro sobre Hollywood e China.
Metaverso: a febre dos NFTs chegou à Olimpíada de Inverno de Pequim, como mostra o Radii China, com uma coleção lançada pelo Alibaba especialmente para o megaevento esportivo.
Podcast: o que é a ideologia política chinesa? Neste recente episódio do Sinica, o cientista político Jason Wu fala sobre o tema.
Atentos: a newsletter Sinocism compartilhou um texto do ex-diplomata britânico Charles Parton, que atuou por 22 anos na China continental, Hong Kong e Taiwan. Parton escreveu sobre a sua percepção acerca de acompanhar e analisar o país (ou ser “China watcher”) nessa nova era de Xi Jinping.
Tipografia: de onde vêm as fontes Chop Suey, usadas para evocar identidade chinesa nos Estados Unidos? Este interessante vídeo conta a história desta tipografia.
Brasil na China: a Embaixada do Brasil em Pequim promove no próximo fim de semana o Festival de Cinema Brasileiro na capital chinesa. Vale conferir aqui quais obras brasileiras serão exibidas e avisar seus amigos que estão por lá.
Amor e sexo: o Reading the China Dream publicou uma entrevista traduzida da socióloga Li Yinhe falando sobre amor e sexo na China.