Edição 207 – Protestos da Praça da Paz Celestial ainda são lembrados na China
Esquece. A mensagem do governo de Hong Kong, desde a aprovação da Lei de Segurança Nacional (LSN), é clara: não é para lembrar dos mortos da Praça da Paz Celestial, seja em espaços públicos, livros ou museus. Quem tentar, pode enfrentar até cinco anos de prisão — como as seis pessoas detidas neste sábado na região do Victoria Park, onde tradicionalmente ocorria uma vigília. Outras formas de memorialização, como missas católicas, foram espontaneamente canceladas por medo de punições. Assim como no ano passado, alguns consulados colocaram velas nas janelas de seus prédios e fizeram posts sobre o assunto nas redes sociais. Apenas honconguenses vivendo em outros países puderam fazer suas manifestações relembrando Tiananmen e a Hong Kong pré-LSN.
O novo centro de lembrança do 4 de junho é Taipei, mas isso é complicado. E não é pouca a complicação. Como destacou o The Guardian, Taipei está em tensão direta e constante com Pequim, em meio a declarações belicosas de estadunidenses e frequentes demonstrações do poderio militar chinês. Além disso, há resistência por parte dos locais em participar desse tipo de manifestação, sob uma lógica que os honconguenses conhecem bem: quem se vê como parte da China muitas vezes não quer contrariar Pequim; quem se vê como local pode considerar Tiananmen uma questão doméstica chinesa. Assim, Taiwan começa a se revelar menos fraternal aos novos chegados. Recentemente, o governo passou a rejeitar pedidos de residência prolongada de pessoas vindas de Hong Kong, seja por não querer atrito com Pequim, seja por desconfiar que essas pessoas seriam espiãs, por conta de seus laços com a China continental.
Torta de climão. Na sexta-feira (3), uma live de Li Jiaqi (ou Austin Li) no Taobao foi interrompida. Li, o “rei do batom”, é considerado o principal influenciador chinês de e-commerce, famoso por ter vendido, em 12h de streaming, 1,7 bilhão de dólares em produtos. Na sexta, Li fazia uma dessas transmissões quando saiu do ar por alguns minutos. Depois, ele postou avisando que teve um problema técnico e não voltaria mais naquela noite, conta o SCMP. O vídeo caiu após um momento inusitado em que foi apresentado um bolo em formato de tanque militar. Muita gente na internet chinesa achou que a questão era mais complicada do que um mau funcionamento de equipamento e que a derrubada tinha a ver com a chegada do dia 4 de junho e ao momento mais icônico dos protestos em 1989, comenta a notícia no The Wall Street Journal. A fatia levantou interesse sobre uma das questões mais complexas da memória coletiva chinesa recente e revelou um paradoxo: para saber que o tanque é sensível, é preciso saber a história do tanque. Li deveria ter aparecido numa live no domingo (5), o que não aconteceu, sem justificativas no Weibo para os seus milhões de seguidores.
Hora de abrir o bolso. No final de maio, o banco central chinês reduziu o piso das taxas de juros para financiamentos imobiliários para 4,45%. Como assinala o China Policy, a medida visa estimular um mercado que vem preocupando Pequim, pois a venda de imóveis no país tem tido taxas de crescimento negativas nos últimos 12 meses. Espera-se que essa redução também estimule a concessão de empréstimos para empresas, cujas taxas de juros tendem a ser vinculadas às taxas imobiliárias. De fato, o Asia Times reportou que o Banco Popular da China também tem feito reuniões com os principais credores do país para pedir que façam mais empréstimos para micro e pequenas empresas e para negócios relacionados à sustentabilidade.
As portas se abriram. Depois de dois meses de silêncio, as ruas de Shanghai voltaram a se encher de novo. As reportagens sobre o 1.º de junho na maior cidade chinesa trazem um clima de festa, com direito a fogos de artifício, fotos e celebrações. Vale conferir a alegria da população nas imagens do The Guardian. Mas isso não quer dizer, necessariamente, que tudo acabou em definitivo. A CNN conta que, apesar da retomada, paira sobre a cidade um temor de novos fechamentos. Uma das marcas do trauma pode ser vista pela proibição do uso do termo lockdown na mídia estatal chinesa, como conta a Folha. Já o South China Morning Post aborda a situação do sistema médico, que se expôs frágil diante da política de Covid zero, que exigiu o deslocamento de 50 mil profissionais de saúde do país todo para atender as emergências de Shanghai. A cidade enfrentou nesses pouco mais de dois meses 620 mil casos e 588 mortes.
Já a capital Pequim, passado o feriado do Festival do Barco e do Dragão, decidiu flexibilizar as restrições para funcionamento de estabelecimentos. Locais como restaurantes, voltarão a abrir esta semana. Isso não quer dizer que as coisas estão calmas por lá, o SCMP registrou em vídeo um protesto, em que trabalhadores enfrentam a política numa tentativa de voltar à capital para trabalhar. O caso acabou em violência. No domingo (5), as autoridades do Conselho de Estado do Partido decidiram ainda banir certos tipos de restrições consideradas “arbitrárias” e que vinham sendo adotadas pelas administrações locais, tentando conter o impacto na economia. A mudança dia após dia sobre o que pode ou não mostra quanto o país enfrenta dificuldades na manutenção desse tipo de política para equilibrar questões sanitárias, bem-estar da população e da economia.
E dê-lhe mochilão. O ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, encerrou uma viagem de 10 dias por oito países da Oceania na última sexta-feira (3). Foram firmados diversos acordos de cooperação econômica, sanitária, ambiental e comercial, notadamente com o Timor Leste, Kiribati, Samoa e Ilhas Salomão. Porém, no Fórum das Ilhas do Pacífico, os países insulares rejeitaram os termos de um tratado multilateral sobre segurança tradicional e segurança pública, manifestando um desejo de se verem longe das disputas entre Pequim e Washington. O Nexo e o The New York Times publicaram matérias sobre a rivalidade de China e EUA na região. De todo o modo, Wang afirmou que a China tampouco deseja uma competição geopolítica e acusou indiretamente os EUA e a Austrália de estarem tentando desacreditar Pequim na região. Após o encerramento do tour pela Oceania, o Ministério das Relações Exteriores publicou um position paper sobre as relações com os países insulares do Pacífico, no qual enfatiza a igualdade entre todos os países, frisa que o multilateralismo regional deve ser consensual e elabora a importância da cooperação ambiental e para o combate às mudanças climáticas.
A compra de petróleo russo pela China tem aliviado o embargo feito pelos europeus. Mas ela não está sozinha neste movimento. Como mostra esta reportagem, a Índia tem sido outra forte aliada de Moscou. O texto explica a complexa triangulação dos negócios, que afeta a economia global como um todo na área de óleo e gás. Ainda que a China não declare apoio à Rússia formalmente e mantenha o discurso de neutralidade, algumas ações do país asiático mostram uma postura favorável a Moscou. Para o embaixador russo em Pequim, a relação entre os dois países é “melhor que uma aliança”. Para se aprofundar no assunto, vale ler este texto sobre como a propaganda chinesa tem atuado em meio ao conflito da Rússia com a Ucrânia, que já ultrapassou 100 dias.
Capital internacional. O futuro das relações entre EUA e China são motivo de especulação, ansiedade e até a CIA está usando softwares para prever o que pode acontecer. Há décadas, Macau é uma ponte inusitada nessa relação ao servir como espaço para magnatas dos EUA operarem cassinos na região e depois usarem seus contatos em Washington para aproximar o país da China. A matéria do Asia Times comenta como novas regras e decisões jurídicas dos tribunais locais, somadas às restrições de turismo pelas políticas de Covid-19 na China continental, desaceleraram a economia na ex-colônia e a relação ficou menos vantajosa. Além disso, uma série de cassinos, financiados por empresários estadunidenses, deve ter que renovar licenças ainda em 2022 — mas novas regras podem dificultar essa dinâmica.
A relação dos “magnatas dos EUA investindo na China” se repetiu recentemente com a divulgação de que os donos da NBA possuem mais de 10 bilhões de dólares investidos no país, conta a ESPN — inclusive um caso de uma empresa que está sob sanção do governo dos EUA. As relações da organização de basquete com o governo chinês azedaram nos últimos anos, apesar do enorme sucesso da liga na China. Em 2019, Daryl Morey, gerente do Houston Rockets, apoiou os protestos em Hong Kong. E, em 2021, o jogador Eneas Kanter (do Celtics) criticou publicamente as políticas de Pequim sobre Xinjiang. Agora, parece que tudo está voltando ao normal no âmbito dos lucros da NBA — em março, iniciaram o retorno dos jogos na televisão chinesa, bem a tempo para as finais do campeonato.
A vida não parece estar fácil para quem quer ler na China. Primeiro, as ilustrações de um livro didático de matemática viralizaram nas redes sociais com protestos e queixas. Elas causaram incômodo por terem sido consideradas “feias e imorais” (uma personagem fica de calcinha exposta e outro tem um volume estranho na calça). Houve ainda quem visse nos desenhos um conteúdo “pró Estados Unidos”. A comoção foi tanta que o Ministério da Educação pediu que a editora responsável recolhesse os livros e verificasse os conteúdos “ofensivos”. Chama atenção o momento em que isso ganhou notoriedade nas redes, já que os livros estão em circulação há cerca de uma década. Já na última quinta-feira (2), foi anunciada a saída da loja da Kindle do país asiático. A partir de julho de 2023, usuários na China não poderão mais usar o serviço para comprar livros digitais e os que já foram comprados ficarão disponíveis apenas até meados de 2024. A Amazon, detentora do leitor digital, já havia deixado o mercado doméstico chinês em 2019.
Pequenos passos, grandes motivos para ter orgulho. O mês de junho é considerado mundo afora a época de manifestações públicas de orgulho da comunidade LGBTQIA+. Nesta temática, o SCMP mostra quais as principais diferenças entre as estratégias usadas pela juventude LGBTQIA+ chinesa e as de seus pares no Ocidente ao lutar para garantir seus direitos dentro de casa. Dia 17 de maio é o Dia Mundial da Luta contra Homofobia, Transfobia e Bifobia e na ocasião oSixth Tone trouxe um texto sobre a conquista da tutela designada para casais do mesmo sexo na China. Pouco depois, o SupChina trouxe uma notícia para ser comemorada: a redução da idade mínima para que jovens possam fazer cirurgias de afirmação de gênero, de 20 para 18 anos.
A saga de Elon Musk na China já teve muitos capítulos e estava na hora de trazermos um resumo. O bilionário é extremamente famoso no país asiático pelos seus empreendimentos e também por ter elogiado políticas chinesas e, recentemente, o trabalho excessivo de funcionários da Tesla no país. Sua empresa ficou notória por ser a primeira montadora estrangeira a ganhar licença para atuar na China, em 2018. O mercado de carros elétricos no país é disputado, com as grandes empresas nacionais e o governo fazendo Musk suar para se manter.
Ele ganhou status de celebridade em território nacional — assim como seu famoso sósia chinês, Yilong Ma. Esta matéria da Sixth Tone conta como Musk e a sua mãe se tornaram ícones na internet chinesa: enquanto ele é mais famoso entre homens da engenharia e indústria que acreditam na ciência para expansão do poder chinês, Maye Musk se tornou uma celebridade de beleza e lifestyle entre mulheres no app Xiaohongshu.
A relação é tão forte que, na época da notícia da possível aquisição do Twitter por Musk, uma série de veículos discutiu se seus vínculos com a China poderiam indicar um possível alinhamento da plataforma com as políticas de Pequim. Mas a lua de mel também tem momentos complicados. Por exemplo, os satélites da Starlink, operada pela SpaceX de Musk, viraram uma dor de cabeça para os militares chineses. Ano passado, a China acusou Musk de colocar pessoas em perigo, afirmando que satélites da Starlink quase bateram na estação espacial chinesa. E a questão voltou à pauta no final de maio desse ano. Com as conexões da SpaceX com as Forças Armadas dos EUA se tornando mais conhecidas, é possível que esse romance acabe?
Zheng He foi um grande explorador chinês do século XV. Sob seu comando, o império da China chegou a praticamente todos os cantos do mundo. Esta seção é inspirada nele e te convida a explorar ainda mais a China.
Arte: o trabalho do ilustrador Peng Kai, que busca retratar aspectos mais esquecidos do cotidiano em Shanghai, foi tema da revista NeoCha. Não deixe de conferir as lindas ilustrações!
Bora pedalar: o SupChina publicou uma matéria com muitas fotos sobre o renascimento da cultura das bicicletas em Pequim de acordo com o ciclista Shannon Bufton.
Fofinha: para celebrar os 25 anos da transferência de soberania da região administrativa especial, o governo de Hong Kong expõe miniaturas de cenas do cotidiano e de ocasiões festivas da cidade. Vem ver.
Escola Boca Rosa: quer saber mais sobre a cultura chinesa? A Radii China fez uma lista com sete influenciadores digitais especializados no tema, cobrindo culinária, história, cinema, moda e comunicação. É um melhor que o outro!
Relatos de 1989: é resgate de 2019 (no aniversário de 30 anos), mas vale esse link em que o SupChina reuniu 30 matérias de jornalistas e críticas de livros sobre os eventos da Praça da Paz Celestial, inclusive de quem estava lá na época. A pesquisadora brasileira Adriana Abdenur, que estava morando em Pequim então, escreveu (também em 2019) sobre a sua experiência lá junto com outros brasileiros.
Fotografias: o escritor e dissidente chinês Ma Jian, que participou dos protestos de 1989, teve livros proibidos e hoje vive na Inglaterra, postou uma série de fotos da época na sua conta do Twitter. Um dos seus livros, Pequim em Coma, conta a história de um homem que leva um tiro nos protestos e entra em coma. O livro foi votado para ser lido pelo nosso Clube do Livro em dezembro. Dá tempo de participar.