Edição 324 – A incansável pressão por filhos e casamento
Boi na linha. Assim como a União Europeia, a China se prepara para exigir rastreabilidade total na cadeia de carne bovina, surge uma nova era para as exportações brasileiras. O país, que já é o principal mercado para a carne brasileira, sinalizou que, até 2025, todas as importações precisarão de rastreabilidade desde o nascimento do animal até o produto final. Isso coloca pressão sobre produtores brasileiros, que terão que se adequar para manter o mercado chinês, especialmente em questões de transparência. Pesquisas indicam que consumidores chineses pagariam até 22,5% a mais por carne sem desmatamento, um ponto que pode vir a ser adicionado a essa rastreabilidade.
No entanto, as exigências de rastreabilidade são apenas uma peça do quebra-cabeça. A China também começa a regular de forma mais rigorosa suas etiquetas de neutralidade de carbono, buscando evitar greenwashing e harmonizar com normas europeias. Esse movimento, que exige contabilidade precisa da pegada de carbono de produtos, implica em uma padronização que só deve ser totalmente implementada em 2027, e pode afetar diretamente os produtos brasileiros, caso a certificação de carbono se torne um requisito.
Por onde anda Wang Huning? A estratégia da China para Taiwan tem se desenhado em duas frentes poderosas: a ideológica e a militar. Wang Huning, o principal ideólogo de Xi Jinping e arquiteto do modelo que consolidou o poder do Partido Comunista contemporâneo, assumiu um papel central para aproximar Taiwan de Pequim. Huning tem direcionado sua influência para estreitar laços com o partido de oposição taiwanês pró-China e engajar a opinião pública local através de campanhas que exaltam a unidade nacional e minimizam o apoio a movimentos pró-independência. O plano é convencer os taiwaneses de que um futuro de “um país, dois sistemas” é viável. Enquanto isso, as demonstrações e exercícios militares tem sido cada vez mais frequentes com simulação de bloqueios e ataques estratégicos próximos à ilha. Grande parte do crescimento desta tensão se deu após a fala do então presidente taiwanês, Lai Ching-te, ter afirmado que apenas o povo de Taiwan pode decidir seu futuro.
Governança de dados. A Administração do Ciberespaço da China (CAC) lançou em março uma nova proposta de regulação para exportação de dados. O pessoal do Stanford Digital China fez uma análise, entrevistou especialistas e explicou conceitos de “dados importantes” no ensaio Moving Data, Moving Target.
Oh, look, Krill! A recente reunião da Comissão para a Conservação dos Recursos Marinhos da Antártica (CCAMLR) terminou em um impasse, com Rússia e China bloqueando todas as propostas, incluindo medidas cruciais de manejo de krill – um invertebrado que serve de alimento para várias espécies marítimas. A resistência foi considerada um “retrocesso” por países como a Austrália, que há anos defende a criação de novas áreas marinhas no Oceano Antártico para proteger ecossistemas vulneráveis que dependem do krill. Este bloqueio também coloca em risco espécies que dependem desse recurso. Para a CCAMLR, essa falta de cooperação é frustrante: países membros estão comprometidos com a criação de uma rede de áreas protegidas, mas a resistência da Rússia e da China desafia a missão original do grupo.
Cautela. Como mencionamos na semana passada, as negociações para adesão do Brasil à Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) parecem ter aquecido. Só que o assessor especial da Presidência da República e ex-chanceler Celso Amorim não quis se comprometer e nem descomprometer com a questão – falou que o país está em busca de sinergias, de uma “elevação” da parceria com a China e que tudo depende do acordo e dos projetos aceitos pelo lado chinês, diz o Brasil 247. Mesmo na incerteza, os EUA já mandaram um recado – a representante de comércio do país Katherine Tai falou em um evento que era melhor o Brasil ter cautela. A Embaixada da China no Brasil reagiu com uma nota, chamando a fala de comentário equivocado.
Enquanto o Brasil faz um chove-não-molha com cuidado, no início de outubro a Colômbia anunciou que se juntará à ICR. Esta matéria do El País conta sobre o processo decisório para isso e como estão as relações sino-colombianas em tempos de governo Petro.
Mais que amigos? Encerrou mais uma Cúpula dos Brics na semana passada. O 16º encontro foi em Kazan, na Rússia, reunindo líderes do bloco, incluindo Xi Jinping. Não contou com a presença do presidente Lula – que sofreu um acidente doméstico logo antes da viagem. O chanceler Mauro Vieira chefiou a delegação brasileira ao encontro, que aliás vai presidir a edição de 2025 da Cúpula no Brasil. Foi o primeiro encontro desde a expansão para Brics+, e contou com outros 13 países convidados (que viraram “parceiros”), e o secretário-geral da ONU António Guterres. A ida de Guterres pode indicar uma tentativa de costurar um acordo de paz no Oriente Médio com apoio do bloco. O encontro foi considerado com um saldo positivo para o Sul Global e parece ter fortalecido o argumento de que empodera China e Rússia no Brics+, que agora analisa a entrada de mais países.
É útero. Na última segunda-feira (28 de outubro), Pequim anunciou um novo pacote de estímulos para o crescimento demográfico. Entre as áreas contempladas, estão apoio a fertilidade e gestação, educação, habitação e emprego, como destacou o China Digital Times, que também relatou que a opinião pública ficou desanimada com o incentivo. O desejo político é reverter a tendência de queda populacional dos últimos anos: em 2023, apenas 9,02 milhões de bebês nasceram, o menor número desde 1949. Além das iniciativas oficiais do governo, parece que os funcionários públicos também resolveram dar sua contribuição para a crise: mulheres chinesas casadas relataram que vêm recebendo ligações perguntando se elas estão grávidas e se têm planos de engravidar. Mesmo quem já é mãe é questionada sobre a possibilidade de uma terceira criança – um cenário cada vez menos provável, como indicou uma pesquisa que ganhou notoriedade nesta semana. Segundo o estudo, jovens mulheres estão recebendo mais educação formal do que seus maridos, o que está relacionado à menor fertilidade: elas “parecem ter maior poder de negociação sobre as decisões reprodutivas” do casal, acreditando que a divisão do trabalho doméstico em um relacionamento tradicional é injusta.
É produto para importação também. Toda proposta do governo para trazer à luz mais chinesinhos é válida para um grupo muito específico: jovens casais heterossexuais cisgêneros legalmente casados. E esse é um grupo que também segue menor do que o desejado por Pequim. Uma razão para isso é o próprio governo, com os anos de sua política do filho único: de acordo com o censo de 2020, o país conta com 35 milhões de homens a mais do que mulheres, o que é ainda mais grave em zonas rurais. Ding Changfa, professor na Escola de Economia da Universidade de Xiamen, apontou uma possível solução para isso: facilitar o casamento de homens chineses com mulheres estrangeiras. Alguns possíveis países de origem seriam Rússia, Camboja, Vietnã e Paquistão. Como conta o South China Morning Post, a sugestão foi mal recebida por muitas chinesas, que apontaram que barreiras linguísticas poderiam ser uma vulnerabilidade para as esposas – já que elas mudariam de país e teriam que cuidar da família do marido – e que a coisa toda cheira a tráfico humano. Alguns homens chineses, no entanto, ficaram interessados na possibilidade de atraírem mulheres que, eles acreditam, seriam menos exigentes e mais gratas. Teve quem comparou a ideia a um grande mercado global, em que maior competição poderia gerar melhores negócios.
Finanças e Cultura na mira. A campanha anticorrupção de Xi Jinping está em alta, com quase 600 mil pessoas penalizadas nos primeiros nove meses do ano, incluindo figuras de alto escalão e empresários no setor financeiro. Entre os investigados está Yao Haijun, o editor que lançou a obra de ficção científica O Problema dos Três Corpos de Cixin Liu. Ele tem sido acusado de “graves violações da disciplina do Partido” – um jeito educado para não falar corrupção. Xi também tem tecido críticas à influência excessiva do mercado na área cultural, apontando para um setor que deve manter valores alinhados aos interesses do Partido. Essa campanha anticorrupção, marca do governo de Xi, já dura mais de uma década e agora miram “banqueiros hedonistas” e executivos que, segundo o governo, colocam interesses pessoais acima dos valores do Partido.
Linguagem comum: esta matéria do Sixth Tone conta sobre a luta da comunidade surda por uma língua comum de sinais na China, que hoje é marcada por diferenças regionais significativas.
Memória: o linguista e professor David Moser escreve sobre o mistério de chineses estarem esquecendo como escrever caracteres relativamente comuns à mão. E sim, tem a ver com tecnologia também.
Mais um: o Zhang Yiming, fundador da ByteDance, é oficialmente a pessoa mais rica da China – segundo a Hurun Rich List.
Fotos de casamento são uma indústria gigantesca na China – e todo turista já passou por pelo menos um ensaio fotográfico na rua. Mas pelo visto também existe mercado para a destruição de fotos de casamento.