Foto oficial da Casa Branca, de Daniel Torok, via flickr.
Edição 371 – Encontro entre Xi e Trump resulta em trégua na guerra comercial

Prosperidade comum? Enquanto prestávamos atenção na Quarta Sessão Plenária, o resultado do PIB chinês no terceiro trimestre foi divulgado: um crescimento de 4,8%, um pouquinho abaixo dos 5,2% do período anterior. Segundo a análise da Caixin, as razões do desaceleramento seriam o fraco consumo doméstico, a crise imobiliária e uma queda nos investimentos em ativos fixos (a primeira em cinco anos). Os fatores que, por outro lado, garantiram que o crescimento se mantivesse próximo da meta governamental – em torno de 5% ao ano – foram a indústria de alta tecnologia e o superávit comercial, segundo a China Brief. Embora até aqui o PIB não tenha mudado muito em comparação com 2024, houve um indicador que bateu recorde: o de ultrarricos. A lista de chineses com patrimônio de pelo menos 5 bilhões de yuans (cerca de R$3,8 bilhões) registrou um crescimento de 31% nos últimos 12 meses, chegando a 1.434 pessoas que, juntas, têm 30 trilhões de yuans (cerca de R$22,6 trilhões), 42% a mais do que no último ano. A discrepância entre o crescimento nacional e o de ultra-ricos coloca em questão a estratégia de “prosperidade comum” anunciada por Xi Jinping em 2021 – e como o 15o Plano Quinquenal pode lidar com o problema.
Quem se interessa pela China não tem como não se perguntar o que explica o modelo — e sucesso — econômico chinês. Nesta edição, trazemos duas reflexões distintas sobre o tema. A primeira delas é um artigo escrito pela pesquisadora Marina Yue Zhang para o The Diplomat, no qual faz uma analogia comparando a dinâmica “agressiva” de impulsionamento da economia chinesa com o jogo de cartas Guandan (traduzido como “jogando bombas”). Em contrapartida, no mesmo texto, Zhang discorre sobre outro componente importante da economia chinesa, o tang ping (躺平), nome dado à dinâmica dos jovens chineses de resistirem às extenuantes jornadas de trabalho conhecidas como 966. O outro texto, do escritor Kaiser Kuo, fala sobre como a economia chinesa pode ensinar lições ao Ocidente. Ele se baseia em uma conversa recente com o historiador da economia Adam Tooze, que afirmou a ele que a ascensão chinesa nas últimas décadas representa um desafio fundamental a pressupostos do pensamento ocidental sobre desenvolvimento, sistemas políticos e até conquistas civilizacionais. Vale passar um bom café e mergulhar nessas leituras.
Aqui no mar. A China encerrou a etapa inicial da construção do seu data center submerso (underwater data center, ou UDC). Além de ser, possivelmente, o primeiro centro de processamento de dados do tipo no mundo, ele também inova ao utilizar energia eólica para alimentar 95% de sua estrutura, como conta a Wired. A submersão garante os principais argumentos de “venda” da proposta, pois reduz em 90% a necessidade de terreno em comparação com um data center convencional e dispensa a coleta de água para refrigeração. A construção está localizada próxima a Shanghai, na Área Especial de Lin-gang, e é resultado de um esforço conjunto de uma série de empresas chinesas e um investimento de cerca de 226 milhões de dólares (R$1.214 trilhão).
Todo esse investimento não veio do nada: é parte da estratégia chinesa de infraestrutura de dados e do plano de transformar Shanghai em um hub de computação em nuvem. O país já tinha experiência com módulos de data centers submersos desde, pelo menos, 2023, quando iniciou um projeto em Hainan; já o lançamento em Shanghai, que tem capacidade de 24 megawatts, é também teste para o próximo objetivo, um centro de 500 megawatts de potência. O conceito de UDC, por sua vez, foi primeiro colocado em prática pela Microsoft no Projeto Natick, na Escócia, há 10 anos. Interessantemente, o projeto da empresa estadunidense foi oficialmente encerrado em 2024; o que restou foram patentes e aprendizados, segundo o Data Center Dynamics. Será que os chineses terão mais sorte?

Cessar-fogo. Não dá para dizer que a disputa comercial entre a China e os Estados Unidos tenha acabado, mas o encontro entre Donald Trump e Xi Jinping parece ter aliviado as tensões entre os dois países. Os presidentes se reuniram na semana passada na Coreia do Sul. Ao voltar para Washington, o líder norte-americano afirmou que o encontro foi 12/10, já Pequim falou em uma “dura vitória”. Trump prometeu reduzir as tarifas impostas a produtos chineses de 20% para 10%. Em resposta, Pequim promete fazer uma compra “massiva” de produtos estadunidenses, como a soja. Ainda entraram nas negociações a normalização da compra de terras raras chinesas pelos Estados Unidos, que prometeram retirar empresas do país asiático da lista de restrições a importações. Trump disse que esse acordo deve ser assinado “em breve”. O encontro, claro, repercutiu e gerou análises, como uma publicada pelo The Guardian, sugerindo que os EUA aprenderam que quem pratica bullying também pode virar alvo. Já a CNN concorda que Xi saiu vitorioso da conversa com o republicano.
Brasil, Sudeste Asiático e o Sul Global. Durante a 47ª Cúpula da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), em Kuala Lumpur, Lula defendeu a aproximação entre a região e o Brasil como eixo estratégico de um mundo multipolar. O presidente brasileiro defendeu o conceito de Sul Global e afirmou que há mais interesses comuns do que diferenças entre os países, destacando a crença de que a cooperação é mais promissora para a prosperidade do que a competição, especialmente nas transições “irreversíveis” nos campos digital e energético. O encontro também marcou a entrada de Timor-Leste no bloco, sob o tema “Inclusividade e Sustentabilidade”, em sintonia com as pautas de Lula no G20 e no BRICS. A cúpula foi acompanhada da assinatura do Acordo de Livre Comércio ASEAN–China 3.0, descrito pelo premiê Li Qiang como “uma alternativa à coerção econômica” e ao protecionismo norte-americano.

Felizmente, até que algo nos separe. O governo chinês busca, de muitas formas, reforçar a ideia de estabilidade familiar como pilar social: desde as políticas natalistas que tentam reacender o “espírito familiar” até os casamentos transnacionais – que em alguns casos flertam perigosamente com o tráfico de pessoas. O tema atravessa debates sobre gênero, autonomia e o papel do Estado na vida íntima dos cidadãos. Mas uma nova onda nas redes tem se apresentado como um contraponto curioso: as 离婚派对, ou “festas de divórcio”. No Xiaohongshu, rede social híbrida de Instagram, Pinterest e TikTok, muito popular entre mulheres jovens urbanas, legendas como “se o casamento é celebrado com um banquete, por que o divórcio também não pode ser?” acompanham fotos e vídeos de vestidos pretos, confetes e certificados vermelhos de divórcio. Mais do que ironia, a tendência expressa um ato de resistência, como descreve a pesquisadora Helena Bode: em um país onde o divórcio feminino ainda carrega um forte estigma, essas postagens transformam o fim de um casamento em ritual de autonomia. Ainda que parte dessa liberdade se expresse em moldes de consumo, com “planos de renascimento” que envolvem skincare, academia e autoaperfeiçoamento, há o surgimento de algo politicamente potente.
Notícias de “um país, dois sistemas”. Nesta semana, a AllAboutMacau (論盡媒體), uma revista e site de notícias da região administrativa especial chinesa (RAE), anunciou que vai encerrar suas operações em dezembro. Recentemente, o veículo teve sua licença de operação revogada, seus repórteres perderam o direito de cobrir eventos oficiais e ainda podem ser processados criminalmente pelo governo – o que gera custos legais adicionais sobre o veículo independente. A pressão sobre a AllAboutMacau é parte de um padrão que vem sendo observado na outra RAE: após o fim de uma auditoria “aleatória” de suas contas dos últimos sete anos, o jornal Hong Kong Free Press lembrou que, ao longo de 2024, apenas 0.37% das empresas na cidade foram auditadas pelo governo, mas que diversas delas eram veículos de mídia, editoras e livrarias independentes. Como aponta a iniciativa Lingua Sinica, esse padrão vem se repetindo desde a implementação das Leis de Segurança Nacional (LSN) nas duas RAEs.
E falando na LSN, nesta terça-feira (28), Andrew Chiu se tornou o primeiro condenado pela lei em Hong Kong a ser libertado após uma redução em sua pena. O privilégio foi concedido por bom comportamento e pelo poder discricionário do governo. Chiu testemunhou contra seus colegas no caso conhecido como “os 47 de Hong Kong”.

Podcast: Em uma conversa gostosa no episódio do Fala Wega, a professora Cecília Mello, a cineasta Milena de Moura e o pesquisador Paulo Menechelli falam sobre diversos aspectos do cinema chinês. Está imperdível.
Mais um podcast: No Café da Manhã, da Folha de S.Paulo, a conversa é com Victoria Damasceno e Larissa Wachholz sobre a importância da ASEAN para o Brasil, os EUA e a China.
Seda: O Museu da Imigração de São Paulo apresenta até 29 de março a exposição Seda Que Une Montanhas E Mares: Da China Ao Brasil, realizada em parceria com o Museu Nacional da Seda da China.
Fica a dica para quem é do teatro: há 12 anos, no mês de outubro, a cidade de Wuzhen, na província de Zhejiang, organiza um festival que recebe artistas de todo o mundo.
