Newsletter 109 (PT)
O governo central chinês revelou, no último sábado, o projeto de sua nova e controversa lei de segurança nacional para Hong Kong. A lei, que segundo críticos e opositores ameaça as liberdades civis e amplia o controle direto de Pequim sobre a cidade, determinaria, por exemplo, que os altos funcionários de Hong Kong escolhessem quais juízes trabalhariam com os casos de segurança nacional — uma alteração com implicações importantes sobre a independência do Judiciário da cidade. Dentre uma série de outras disposições, também chama atenção que a China continental passaria a orientar e supervisionar o policiamento de segurança nacional em Hong Kong, além de coletar e analisar informações levantadas na cidade sobre esse assunto.
Falando em segurança nacional, os dois cidadãos canadenses que estavam presos desde dezembro de 2018 foram formalmente acusados pelo governo chinês. Michael Kovrig (ex-diplomata que atuava no Crisis Group) e Michael Spavor (empresário) estavam sob custódia de Pequim, e somente agora foram formalmente acusados de espionagem. As prisões dos dois foram fortemente relacionadas — pelo timing e cidadania — com a prisão de Meng Wanzhou, executiva da Huawei detida no Canadá duas semanas antes, em início de dezembro de 2018.
Networking importa em todo lugar — até mesmo no Partido Comunista da China (PCC). A crença de que a burocracia meritocrática do PCC só leva em conta eficiência e resultados econômicos para promover um integrante é rebatida em um recente artigo publicado por pesquisadores da Universidade de Cambridge. Na peça, argumenta-se que o fator mais importante na hora de chegar à elite do Partido está nas relações pessoais que foram construídas ao longo do tempo — seja pelo estudo dos membros na mesma universidade, participação no mesmo grêmio estudantil ou trabalho conjunto em algum momento de suas carreiras políticas. Um integrante que tenha tido um papel relevante para o desenvolvimento econômico de uma província também é notado pela burocracia, mas o trabalho duro é um diferencial maior nos níveis mais baixos da hierarquia.
Segundo os pesquisadores, a crença na racionalidade plena de uma burocracia meritocrática como o PCC parte da concepção errônea de que a organização é homogênea e motivada pela maximização de resultados. Não é bem assim: no regime chinês, a sobrevivência política é o diferencial — e daí o surgimento de diferentes facções dentro do PCC não surpreende.
As compras externas de títulos chineses mais do que dobraram no mês de maio, sinalizando a atratividade da economia do país em tempos de crise global. Além disso, os bancos da China anunciaram um aumento de mais de 60% no comércio de divisas internacionais durante o mesmo período — número que atesta a crescente disposição de indivíduos e empresas em trocar dólares americanos por yuans chineses. Para analistas, ambas as tendências são resultado da flexibilização monetária global liderada pelo FED, nos EUA, e da busca de investidores por rendimentos em um mundo que responde à pandemia do coronavírus com taxas de juros ultra-baixas ou até mesmo negativas.
No âmbito internacional, ganhou destaque o conflito na fronteira, no vale Galwan, entre China e Índia. Para um histórico das disputas fronteiriças em formato de podcast, ouça Ankit Panda e M. Taylor Fravel conversando no início de junho, para o The Diplomat. Fizemos um apanhado do que as últimas edições contaram — você pode ir ao nosso Twitter para ver mais. O confronto dessa semana ocorreu entre os dias 15 e 16, quando soldados de algum dos lados (a China diz que foram tropas indianas e a Índia diz que foram tropas chinesas) ultrapassaram a linha fronteiriça. Sem uso de armamentos de fogo, apenas com socos e armas brancas, 20 soldados indianos morreram e 76 ficaram feridos, segundo o governo da Índia.
Enquanto isso, o governo chinês não divulgou um número oficial de mortes, mas relatos de inteligência vindos de Nova Delhi indicam que pode ter sido cerca de 50. Os detalhes estão estranhos e confusos, com relatos de que muitas das mortes teriam sido por queda no penhasco onde a disputa entre cerca de 900 soldados se iniciou ou por hipotermia, devido às baixas temperaturas da região. Autoridades dos dois países indicaram interesse em resolver a questão de maneira diplomática e pacífica.
Aconteceu nessa semana a Cúpula Extraordinária China-África em solidariedade contra o COVID-19. No discurso de abertura, Xi Jinping deu destaque às relações diplomáticas de longa data entre Pequim e diversos países africanos, e reforçou a prontidão chinesa em prover o continente com ajuda humanitária para combater a pandemia. Dois elementos chamaram atenção no discurso de Xi: o primeiro diz respeito à aceleração da construção de hospitais por vários países como parte de uma grande iniciativa de saúde, o que aprofunda a presença de empresas chinesas no continente e investimentos via Eximbank chinês; o segundo elemento é a renúncia ou adiamento, pela parte chinesa, em coletar pagamentos de empréstimos de diversos países africanos.
Sobre este último ponto, Debora Brautigam, Yufan Huang e Kevin Acker fazem uma análise explorando os processos de alívio de dívida com “características chinesas”. Vale fazer um cafezinho e ler o artigo aqui.
David Whineray, da Universidade da ONU (UNU), publicou um relatório sobre a atuação dos EUA e da China no sistema ONU — entre si ou isoladamente. O documento traz um histórico da política externa dos dois países dentro da organização e perspectivas até 2025. Não é novidade que o modelo de multilateralismo, formado pelo sistema ONU, Banco Mundial e FMI, que surgiu após a Segunda Guerra, foi amplamente moldado pelos Estados Unidos. A ascensão da China no cenário internacional também viu a sua presença aumentar em atuação (e em doações) nesses espaços, sendo, a China, o país com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU que mais contribui com o envio de soldados nas operações de paz. O governo Trump trouxe mudanças para a política externa, com uma visão nacionalista e menos interessada em participar ativamente desses fóruns. Assim, abriu-se mais espaço para a China.
Na última edição comentamos sobre a possível reunião de alto nível entre o governo da China e o dos EUA. Ela realmente aconteceu, na quarta-feira (17), mas não parece ter tido muitos resultados concretos e poucos detalhes chegaram até a mídia — ainda que Yang Jiechi, representante chinês, tenha dito que sua conversa com Mike Pompeo, secretário de Estado dos EUA, foi construtiva. Tratou-se do primeiro encontro diplomático pessoal entre os dois países, desde o início da pandemia. Segundo alguns especialistas entrevistados para a Politico China Watcher, os temas teriam incluído Hong Kong e vistos de jornalistas, embora o papel maior da reunião possa ter sido demonstrar o desejo mútuo em desescalar as tensões entre Washington e Pequim — mesmo que elas sigam em alta na prática.
A reunião ocorreu em meio ao polêmico lançamento do livro de John Bolton, ex-Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA. No livro, Bolton acusa Trump de inúmeras coisas, dentre as quais ter pedido a ajuda de Xi Jinping para sua reeleição durante a reunião do G20 em 2019, através do forte apoio chinês à compra de soja e trigo dos EUA, para garantir apoio de fazendeiros estadunidenses na campanha. Outro ponto que ganhou destaque foi o de que Trump teria aprovado a decisão do governo chinês de criar os chamados “campos de reeducação” na região de Xinjiang, para aprisionar membros da minoria uigur. Pequim ainda afirma que os campos não são prisões, apesar de frequentes relatos sobre o desaparecimento de pessoas.
Falando em Xinjiang, Trump assinou, nesta semana, uma lei impondo sanções contra oficiais chineses que estejam envolvidos nos campos e em atos de repressão contra a população uigur, conhecida como Uighur Human Rights Act. Pequim reagiu com palavras fortes, e prometeu retaliação aos EUA por se envolverem em questões domésticas chinesas. Mas agora, Trump voltou atrás na decisão. O pesquisador brasileiro Victor Vieira, que estuda o tema, publicou um texto sobre isso de maneira mais detalhada para o nosso site.
O mais recente surto de COVID-19 em Pequim está oficialmente sob controle. O mercado Xinfadi gerou notícias mundo afora após terem sido encontrados resquícios do novo coronavírus em uma tábua de corte de salmão. Em questões de horas, o mercado foi interditado e a capital passou a testar quase 400.000 pessoas por dia, desde o dia 11 de junho. Estar sob controle não significa, no entanto, que não há mais casos na cidade, mas sim que as autoridades epidemiológicas conseguiram isolar um grande número de comunidades residenciais (小区), e que é possível saber, através dos QR codes digitais, a extensão de prováveis novas infecções. Até agora, Pequim registrou 236 casos de COVID-19 desde o início das infecções em Xinfadi.
A forma com que o novo surto tem sido controlado mostra um aprimoramento na ação das autoridades locais e uma forma alternativa de lidar com novos casos. Contrariando o receio de muitos países, Pequim não se tornou uma “segunda Wuhan”, ou seja, não houve o fechamento completo da cidade nem de todas as comunidades residenciais em um distrito. A intervenção foi muito mais cirúrgica: apenas algumas comunidades ou ruas foram interditadas, ao invés de um distrito inteiro. Para se ter uma noção, Pequim possui 16 distritos, que variam sua demografia entre 317.000 e quase 4 milhões de habitantes. Uma comunidade residencial em Pequim tem, em média, 2.000 pessoas.
Recentemente, a sociedade chinesa tem se tornado mais tolerante à comunidade LGBTQ. Nem todos os membros dessa comunidade, porém, se beneficiaram igualmente desses avanços. O caso de pessoas transsexuais é particularmente preocupante. Uma pesquisa de 2017 indica que, à época, a taxa de desemprego entre transsexuais chineses era 3 vezes superior à mesma taxa entre não-transsexuais. Além disso, quase metade dessas pessoas declaravam esconder sua identidade de gênero no ambiente de trabalho por medo de retaliações. Na falta de legislações focadas na questão transgênero, pessoas transsexuais agora buscam o caminho judicial para travar a luta por seus direitos. Apesar de vitórias em cortes serem difíceis, casos marcantes que chamem a atenção do público podem servir de impulso ao esforço de acabar com a discriminação contra esse grupo.
O movimento Vidas Negras Importam (ou 黑人命也是命, como foi denominado em mandarim) não tem recebido quase nenhum apoio das estrelas do hip-hop chinês. As poucas manifestações sobre o assunto foram discretas ou até mesmo controversas. O rapper Sun Bayi, por exemplo, declarou que é difícil ter empatia com o movimento antirracista porque ele nunca viveu nos Estados Unidos. “O que eu poderia dizer sobre isso?”, concluiu. O silêncio e indisposição, que contrastam com o apoio recebido pelo movimento por artistas de outras partes do mundo, deixa claro que o sucesso comercial do hip-hop na China se dá em grande medida às custas da separação do gênero musical de suas raízes negras por razões políticas e culturais — fenômeno que, claro, é alvo de críticas dentro e fora da comunidade musical internacional.
O hit do verão: definitivamente é Mojito, do ícone do mandopop Jay Chou, com um vídeoclipe gravado em Cuba. O som estourou nas plataformas de música e até aumentou as vendas do drink de mesmo nome no país.
Podcast: o episódio do ChinaTalk com Antony Dapiran (autor do recém publicado City on Fire: the fight for Hong Kong) fala sobre os protestos em Hong Kong durante o ano de 2019.
Uni-vos, 同志们:Confira o artigo escrito pelo brasileiro Tomás Pinheiro sobre o trabalho de Musk Ming, um artista chinês que busca ressignificar a masculinidade a partir de um estilo homoerótico.
Movimento negro e China: houve um tempo em que a China comunista se aproximou de lideranças negras na África ao colocar, como análogas, as experiências chinesas e africanas, segundo a autora Vera Fennel do (a ser publicado) livro Reading Black Through Red, que também utiliza pôsteres de propaganda (como o que mostramos abaixo) para construir seu argumento. Vale ler também esse texto com muitas dicas sobre como estudar a história da China moderna a partir dos olhos de afro-americanos.