Newsletter 120 (PT)
Uma série de protestos na Mongólia Interior, região autônoma localizada no norte da China, tem colocado Pequim sob alerta. A movimentação popular se desencadeou após o governo central ter anunciado a obrigatoriedade do uso do mandarim como idioma de ensino de três disciplinas anteriormente ministradas em mongol nas escolas públicas da região. Como parte de uma política maior da expansão do uso de mandarim na região, a ordem também inclui a diminuição gradativa do ensino de história, literatura e idioma locais, cedendo cada vez mais espaço ao estudo da história nacional da República Popular da China. Em protesto, milhares de famílias proibiram que seus filhos fossem à escola. Em algumas regiões, crianças sequer foram matriculadas.
A reação do governo central foi imediata: postagens censuradas no Weibo, WeChat e telefone de pais e professores bloqueados, e até lista pública de pessoas procuradas pela polícia distribuída em locais públicos, com promessa de recompensa para os denunciantes. Para as pessoas etnicamente mongóis que trabalham em repartições públicas, foi dado um ultimato: se até o início de setembro seus filhos não estivessem de volta à escola, ações disciplinares e demissão viriam logo em seguida. Para Pequim, os protestos são frutos de influência estrangeira que tenta atiçar movimentos separatistas na região. A política do governo central muito se assemelha ao que foi feito anos atrás em outras regiões autônomas: Tibete e Xinjiang. Quer saber mais? Aqui você encontra os pontos mais importantes dessa discussão.
Em discurso feito durante a Conferência Global de Comércio de Serviços, em ocasião da edição de 2020 da Feira Internacional de Comércio de Serviços da China, Xi Jinping anunciou que apoia a cidade de Pequim na criação de uma zona piloto de livre comércio internacional para o setor de serviços e economia digital e, além disso, na promoção de inovações científicas e tecnológicas. “A China dará continuidade a seu processo de abertura e estabelecerá um sistema robusto de lista negativa de comércio de serviços transfronteiriços”, afirmou o líder. Listas negativas, que já existem em outros setores da economia do gigante asiático, servem para determinar quais áreas estão ou não abertas a investimentos estrangeiros no país. No caso dos serviços, uma lista própria deve ser elaborada até o fim do ano, de acordo com o Ministério do Comércio chinês.
São quase 20 anos da entrada da China na Organização Mundial do Comércio, a OMC, em 2001. É inegável que o país se tornou um gigante econômico em escala global, mas a distribuição dos ganhos comerciais não necessariamente se traduz de maneira equilibrada internamente. Uma análise inicial publicada pela Macropolo destaca algumas dessas diferenças. As províncias costeiras, especialmente Zhejiang, cuja capital é Hangzhou (com economia fortemente baseada em alta tecnologia), e Jiangsu, cuja capital é Nanjing, ganharam em termos de comércio. As “perdedoras” no quesito comércio foram as províncias no nordeste, Heilongjiang, Liaoning e Jilin — que ficam no que é considerado o rust belt (cinturão da ferrugem) da China —, por terem se desindustrializado desde a abertura comercial. A costa e as regiões com economia mais agrícola viram maiores crescimentos nos seus PIBs, enquanto a região central passou por uma urbanização mais acelerada.
Na última sexta-feira (04), os ministros da Defesa da China e da Índia se reuniram em Moscou, na Rússia, para tratar das crescentes tensões fronteiriças entre os dois países. O encontro foi o primeiro a ser realizado desde que os novos choques na região de Ladaque, nos Himalaias, se iniciaram em maio deste ano. Não há transcrição disponível dos pontos discutidos na reunião. O representante indiano, Rajnath Singh, contudo, declarou publicamente que “a paz e a segurança na região demandam um clima de confiança, não-agressão, resolução pacífica de diferenças e respeito pelas regras internacionais”. Já Wei Fenghe, do lado chinês, afirmou por meios oficiais que tomou a ocasião para reforçar que as duas nações devem “esfriar” a situação e “manter a paz e tranquilidade”. Wei, entretanto, declarou também que a responsabilidade pelas recentes tensões é inteiramente da Índia, e que “nenhum centímetro de território chinês será perdido”.
Apesar dos sinais de tentativas de reconciliação, porém, as tensões entre os dois países seguem aumentando. Em decisão contenciosa, o governo indiano ordenou, também na última semana, o bloqueio do funcionamento de mais 118 aplicativos móveis chineses no país. Novamente citando preocupações de segurança nacional, a deliberação atinge gigantes como o Alipay, app de pagamentos da Alibaba, além do mecanismo de buscas da Baidu e de jogos populares da Tencent. Em reposta, a mídia estatal chinesa publicou críticas à decisão, classificando-a como uma “espada de dois gumes” que busca incitar sentimentos nacionalistas e desacoplar economicamente a Índia da China.
Por fim, uma dimensão da deterioração das relações entre Pequim e Nova Déli largamente ignorada nas discussões sobre o assunto é o impacto da animosidade sobre pacientes chineses com câncer. Para centenas de milhares de pessoas impactadas pela doença no gigante asiático, a única opção financeiramente viável de tratamento é justamente a importação de medicamentos genéricos indianos. Se a pandemia da COVID-19 já tinha dificuldade o acesso a esses medicamentos, o tensionamento político entre os dois países tornou a situação, como mostra a Sixth Tone, ainda mais delicada.
O que gênero tem a ver com a construção de hidrelétricas chinesas no Delta do Rio Mekong? Para a doutora Pichamon Yeophantong, tudo. Mulheres estão mais familiarizadas com as mudanças e o funcionamento dos rios na região: são elas que coletam dejetos, alimentos e recursos naturais à beira dos rios para alimentação e como fonte de renda familiar. Para Yeophantong, as hidrelétricas chinesas não estão atentas a questões relacionadas a gênero na região o tanto quanto deveriam, começando pelos trabalhadores chineses no Mekong — a maioria homens. As referências à discriminação de gênero em megaprojetos, porém, têm mais um caráter formal; acaba-se ouvindo o grupo que tem mais poder dentro das comunidades (no geral, homens).
O princípio chinês de “não-interferência” em assuntos domésticos de outros países é visto até nas pequenas interações internacionais. Por receio de “perturbar” os costumes e o funcionamento dentro de uma comunidade, muitas empresas chinesas não consultam as mulheres locais. Segundo Yeophantong, empresas não-asiáticas costumam levar questões de gênero mais em conta, mesmo que ainda haja muito mais a ser feito.
Saiu o Relatório Anual do Departamento de Defesa para o Congresso dos EUA sobre o poder militar chinês, incluindo a evolução da sua modernização militar. Documento famoso para quem é da área, o relatório é publicado desde 2000 e parece que o deste ano superou em seu detalhamento: são 200 páginas. Alguns destaques incluem que a China tem menos ogivas nucleares do que estimado (200 e poucas), aumentou consideravelmente o número de mísseis balísticos de alcance intermediário de 80 para 200 (que cobrem entre 3500 e 5000 km) e compara as capacidades em que a China já alcançou paridade com os EUA. Outro destaque foi que a Marinha chinesa é oficialmente a maior do mundo (350 embarcações), ainda que se argumente que seus navios são menos sofisticados do que os estadunidenses (que tem 293).
Apesar dos avanços, a China ainda está bem atrás do primeiro lugar em gastos de defesa: 200 bilhões de dólares — ⅓ dos gastos dos EUA. São 1,5% do seu PIB, contra 3,4% do primeiro lugar estadunidense. Contudo, os gastos chineses ainda seriam o dobro de 10 anos atrás. O relatório também destaca as tensões com Taiwan e disputas no Mar do Sul da China, dizendo que Pequim prefere ações coercitivas, porém calculadas, para evitar conflitos de fato, especialmente com a Marinha estadunidense.
Falando em barcos, a presença de navios de pesca chineses perto das Ilhas Galápagos está chamando a atenção mundial para Pequim e pode significar uma nova legislação internacional sobre pesca em mares distantes. São 340 navios pescando ali na diversificada região, o que já causou revolta com o governo e a população do Equador, como contamos na edição em espanhol. Nem todos os navios são chineses, mas a maioria sim. Trata-se de um risco para o ecossistema e a pesca em mares distantes é pouco regulada internacionalmente. Em agosto, Pequim proibiu que navios chineses pescassem lula na região por três meses, e passos mais concretos devem ser tomados nos próximos meses. O escrutínio se dá também pelo fato de que, em maio de 2021, o país vai sediar a Conferência de Biodiversidade da ONU, na cidade de Kunming.
Não são tempos fáceis para a comunidade LGBTQIA+ na China. Não bastasse o recente cancelamento da Shanghai Pride, agora um novo episódio judicial ilustra as dificuldades na luta pela igualdade no gigante asiático. Em 2017, a editora Jinan University Press foi processada por publicar um livro didático que se referia à homossexualidade como um “distúrbio de atividade sexual”. O temor era de que o livro, que é usado por centenas de milhares de estudantes em aulas de educação sexual no país, contribuísse para a estigmatização e reforçasse dificuldades de auto-aceitação entre pessoas não-heterossexuais na China. Julgado na semana passada, o caso, contudo, foi vencido pela editora, sob a alegação do tribunal responsável de que “as editoras devem regular a qualidade de seus livros com base em leis e regulamentos, mas não são responsáveis por censurar opiniões acadêmicas e dissonâncias cognitivas”.
Está disponível em alguns países (mas ainda não na China) a nova versão da Disney sobre a lenda de Mulan. Já em 2019 o filme estava cercado em polêmica, como a #BoycottMulan (que viralizou no Twitter) após a atriz principal, Liu Yifei, repostar na rede social Weibo um vídeo e palavras de apoio aos policiais atuando contra os protestos em Hong Kong. Yifei nasceu em Wuhan, apesar de hoje ser naturalizada como estadunidense. A história da guerreira vem do poema A Balada de Mulan, do século V ou VI, de autoria anônima e que tem várias versões apontando que Mulan pertença a uma minoria étnica do norte da China. Entre as críticas, uma foi sobre a representação de habitações populares da etnia hakka, que é do sul do país.
Nenhum dos roteiristas é de origem chinesa, mas os realizadores argumentam que o apelo emancipatório para mulheres é universal. Algumas alterações foram feitas para deixar o filme mais sério e mais focado na audiência chinesa em relação à animação da Disney de 1998 — que não havia feito muito sucesso por lá. O filme traz com mais força a questão da piedade filial, um dos valores-chave do Confucionismo. De todo modo, o filme aparece em meio à acelerada tensão entre EUA e China, com empresas como a Disney tendo que navegar essas ondas.
Postamos o texto sobre a pandemia na China do jornalista e escritor Peter Hessler, algumas edições atrás. Uma crítica direcionada ao The New Yorker sobre o texto de Hessler foi feita pelo sinólogo Geremie R. Barmé e publicada no site China Heritage. Barmé critica Hessler por fazer uma descrição sanitizada da situação na China, fugindo de temas políticos relevantes sobre como o país lidou com a pandemia.
Arte: Inspirado pelas sete emoções da medicina tradicional chinesa — tristeza, melancolia, medo, susto, raiva, alegria, preocupação — Ding Wei cria autorretratos mostrando sua busca por identidade como um sino-americano.
Dose dupla: a seção musical dessa semana está bem generosa: aumente o volume para ouvir o Indie de The Fur e o rock psicodélico de Crocodelia. Taiwan é demais. Aliás, confira a nossa playlist no Spotify.
Fotografia: as lentes do fotojornalista Chen Ronghui capturam com sensibilidade o senso de desencantamento de jovens em regiões às margens do desenvolvimento chinês.
Literatura: um conto da renomada escritora chinesa Can Xue traduzido para o inglês. Chama-se “Our Human Neighbors” e é parte da recém publicada coleção de contos I Live in the Slums. No mesmo link, é possível achar também a versão em mandarim.
Netflix: encabeçada pelos criadores da série Game of Thrones, vai rolar uma série baseada na trilogia de ficção científica de Cixin Liu. Um bom momento para repostar esse artigo acadêmico que já sugerimos sobre interpretações de política internacional na obra, além dessa entrevista do ano passado.