Edição 173 – Fim do caso Meng-Michaels e novas regras para aborto
Contracepção contra o aborto. Quem acompanha a questão do aborto na China sabe que, além de ser legalizado há décadas — e até estimulado em alguns casos —, ele é muito popular mesmo. Isso se deve em parte a uma educação sexual subótima, que, como já comentamos, só se tornou obrigatória nas escolas no final do ano passado. Para reverter essa tendência, Pequim anunciou que vai dar mais ênfase na prevenção de gestações indesejadas, a fim de reduzir a necessidade de interrupções da gravidez. O texto, divulgado nesta segunda-feira (28), ainda não traz muitos detalhes de como isso será implementado — as primeiras notícias falam apenas em reduzir abortos por motivos que “não sejam médicos”. Apesar de a notícia falar disso num contexto que parece ser sobre educação sexual, não está claro o que isso significará, num momento em que a China quer aumentar a taxa de natalidade. Neste contexto, o anúncio gerou preocupação entre jornalistas e pesquisadoras feministas, que entendem que isso abre margem para interferências sobre o direito reprodutivo das mulheres.
O texto divulgado estimula o uso de métodos contraceptivos e menciona a intenção de que homens “compartilhem a responsabilidade” sobre evitar concepções indesejadas. De acordo com o texto da Sixth Tone, a maior parte dos abortos no país é feita por mulheres solteiras. Vale lembrar que, na China, mães solo e suas crianças enfrentam dificuldades para terem acesso a serviços públicos de saúde reprodutiva e educacionais, já que a obtenção de hukou para bebês (registro das crianças) costuma estar vinculada a mulheres casadas. O anúncio acontece num momento em que a China tenta aumentar a taxa de natalidade do país, e meses depois do anúncio da política do terceiro filho, que enfrenta resistência por parte, especialmente, das mulheres.
Evergrande sem fim. Tema de nossas últimas newsletters e de dois episódios do Cafezinho, a crise da empresa continua a preocupar investidores na China e no mundo. Quinta-feira (23) foi o primeiro prazo para a Evergrande realizar o pagamento de 80 milhões de dólares — relativos a juros de dívidas. A empresa, sediada em Shenzhen, ainda não pagou o montante devido, mas tem 30 dias de carência. Passado o prazo, apesar da carência, autoridades locais abriram uma investigação sobre o braço da companhia ligado à gestão patrimonial, conforme reportou a Reuters. Embora o governo central venha injetando liquidez no mercado financeiro para evitar oscilações bruscas, e as ações da Evergrande tenham recuperado parte do valor perdido nas últimas semanas, Pequim já alertou governos locais para que se preparem para um eventual colapso da empresa, segundo noticiou o The Wall Street Journal.
Nesse contexto, não deixe de ler a análise de Vinicius Freire sobre como a crise da Evergrande se encaixa nas políticas mais recentes adotadas pelo governo de Xi Jinping. Entre outras análises sobre a questão publicadas na última semana, destacamos também o texto de Claudia Trevisan no Estadão, a análise de Karin Vazquez para a Folha e a conversa de Rodrigo Zeidan com Renata Lo Prete no podcast O Assunto. Para quem domina o inglês, também sugerimos o episódio do China Talk que esmiúça o tema (cuja transcrição pode ser lida aqui), o texto de Michael Pettis para a Carnegie Endowment sobre os significados para o desenvolvimento chinês e a matéria do Pekingnology sobre o fim de uma era na urbanização do país.
Não bastasse a crise financeira, o grupo HNA se viu envolvido agora em um escândalo policial com as detenções do presidente e do CEO do conglomerado, Chen Feng e Tan Xiangdong. Os dois foram levados em meio a acusações de envolvimento com ações criminosas, que não foram especificadas.
Em fevereiro, o HNA apresentou pedido de falência devido a dificuldades de liquidez, como contamos aqui. O grupo, que tem a Hainan Airlines como carro-chefe, alegou dificuldades em meio à redução do turismo pela pandemia. Em nota, o conglomerado informou que a recuperação e os negócios seguem na normalidade. Aos integrantes do PCCh da empresa, foi pedido que tomem a dianteira na gestão. Em 2018, o grupo apareceu no noticiário com a morte de Wang Jian, co-presidente ao lado de Chen. Segundo reportagens locais da França, onde a morte ocorreu, Wang teria caído acidentalmente de um muro enquanto tirava uma fotografia.
E por falar em prisão de empresários, o ex-presidente da Moutai Yuen Renguo foi condenado à prisão perpétua por crime de corrupção. Yuen teria aceitado ilegalmente dinheiro e propriedades num valor de 112,9 milhões de renminbi (cerca de R$ 93,2 milhões). Antes de se tornar presidente da empresa de bebidas com maior valor de mercado do mundo (e que fabrica o famoso baijiu chinês Moutai, oferecido em banquetes oficiais), ele ocupou em 2018 outros cargos executivos — e teria, nesse período, atuado para ajudar pessoas a conseguir direitos de distribuição da bebida. Neste link, a Caixin conta mais detalhes do caso e a ligação com investigações envolvendo o ex-vice-governador de Guizhou.
Ainda sobre corrupção, o The New York Times fez uma longa análise baseada nas recém-publicadas memórias de um executivo com conexões importantes na China e que teria um mapa sobre o funcionamento da corrupção no país e no PCCh.
Adeus, Bitcoin. A gente já vinha falando que a China estava dificultando a mineração de criptomoedas, preocupada com a situação do mercado financeiro no país. Agora, em anúncio feito na última sexta (24), o Banco Central declarou ilegais a mineração e as transações com esse tipo de moeda no país, conforme conta a Reuters. Um dos resultados da notícia foi a desvalorização do Bitcoin e do Ether, duas das maiores criptomoedas. Não é a primeira vez em que as autoridades fazem um movimento assim. Em 2018, por exemplo, o Banco Central da China lançou documentação interna para instituições financeiras nacionais pararem de financiar e operar esse tipo de transação, o que seguiu acontecendo via mercados internacionais.
Bandeira branca. Depois de quase três anos de imbróglios e disputas, o principal motivo de tensão entre Canadá e China parece ter chegado ao fim. Após assinar um acordo, a diretora financeira da Huawei e filha do fundador da empresa, Meng Wanzhou, foi liberada da prisão domiciliar que cumpria desde o fim de 2018 no Canadá. Ela havia sido detida em solo canadense a pedido dos Estados Unidos por suposta violação à lei estadunidense de sanções ao Irã. O caso de Meng, desde então, passou a ser fortemente vinculado ao caso “dois Michaels”: um ex-diplomata e um empresário canadenses que foram detidos em solo chinês logo depois da prisão de Meng. Acusados de espionagem, como já contamos aqui, os Michaels ganharam liberdade poucas horas depois da herdeira.
O caso Meng ganhou forte repercussão nas redes sociais chinesas, sobretudo com o vídeo dela chegando em Shenzhen e elogiando a “mátria” por não ter esquecido dela. Porém, na imprensa chinesa não há menção a ela ter admitido qualquer erro, diferentemente do que foi retratado por veículos internacionais. Houve ainda quem debatesse o fato de ela entrar no país sem exigência de quarentena. Já a liberação de Michael Krovig e Michael Spavor apareceu timidamente entre as notícias chinesas. O Global Times credita uma fonte sigilosa para falar que os dois, depois de assumirem culpa, teriam sido liberados para tratamento médico. Embora a China negue que as prisões tenham sido feitas em retaliação, o caso dos dois Michaels costuma ser tratado na imprensa internacional como “diplomacia de reféns”, conforme explica Marcelo Ninio em sua coluna do O Globo.
Foi com emoção. A abertura da 76a Assembleia Geral da ONU, na última terça (21), teve apresentação histórica de BTS na sede (em Nova York) e teve Covid-19 na delegação brasileira. Em meio à pandemia, Xi Jinping preferiu fazer seu discurso por vídeo. Em uma fala pré-gravada de 15 minutos (aqui o vídeo ou o texto, com tradução para o inglês — ou em mandarim), o líder chinês enfatizou a importância da China e da cooperação no combate global, com base na ciência, ao novo coronavírus. Xi falou em diálogo, desenvolvimento econômico e multilateralismo, incluindo a proposta de criação do que seria uma Iniciativa Global de Desenvolvimento. O ministro das relações exteriores chinês, Wang Yi, falou sobre a ideia num Fórum temático em Pequim, no domingo (26).
Nas mídias da China, dos EUA (e do Brasil) houve comparação das indiretas nos discursos de Biden e Xi, apesar de nenhum citar o outro país nominalmente. O atual presidente estadunidense discursou algumas horas antes de Xi, dizendo que não era sua intenção iniciar uma nova Guerra Fria. Teve gente que viu mais competição do que cooperação, como na análise da newsletter do Politico.
A parte mais memorável do discurso de Xi foi sobre carvão e a promessa de encerrar o financiamento de projetos de usinas à base do material no exterior, bem como a de apoiar o desenvolvimento sustentável em outros países. Como conta Shi Yin neste completo artigo para o China Dialogue, os projetos chineses com carvão foram bem reduzidos nos últimos cinco anos, sendo que metade deles já foram pausados ou até cancelados. A previsão é de que 54 projetos sejam afetados, ainda que não se saiba como será essa implementação, como também discute esta matéria no The Guardian. Só que o país também precisa dar um jeito no uso doméstico de carvão, do qual é extremamente dependente. Sobre isso, Xi não perdeu o ritmo e falou ser preciso desenvolver a indústria para ser mais verde.
É uma pauta que já apareceu recentemente aqui e também aqui, quando contamos a respeito de um estudo da Universidade de Boston sobre a pegada de carbono chinesa. O fato é que o setor privado fora da China segue sendo o principal financiador de termelétricas a carvão. O investimento chinês lidera somente se contabilizarmos apenas projetos com gasto estatal. Tem mais gente que precisa subir nesse trem.
Como a China vê a saída de Merkel? O fim do governo Merkel deve se concretizar após as eleições alemãs do último final de semana. Isso parece ter acendido um alerta, nas autoridades chinesas, sobre as expectativas para a relação entre os dois países, agora sob um novo comando do lado europeu. Este texto, publicado originalmente pela Xinhua e replicado pelo China Daily, defende que as relações se tornem mais próximas. Outro sinal de preocupação de Pequim com as mudanças em Berlim fica claro neste texto do Global Times, que diz que o modelo imprimido por Merkel em seus 16 anos de governo deve sofrer “algumas alterações”. Na imprensa brasileira, Tatiana Prazeres escreveu uma análise para a Folha sobre as cobranças em cima de Merkel a respeito da China — vale a leitura.
Parceria não tão pacífica. Na semana passada, contamos aqui que a China pediu formalmente para participar da Parceria Transpacífica — e como isso foi mal interpretado por alguns países. Agora, o assunto volta à pauta com Taipei querendo ingressar no grupo. Pequim protestou alegando que não há espaço para isso, já que a ilha é considerada parte do território chinês. O bloco, formado por países da Oceania, da Ásia e das Américas, deve passar por dias de tensão sobre como conciliar os pedidos. Aguardamos os desdobramentos.
Ativistas desaparecidos podem ter sido presos. Nome importante do movimento #MeToo na China, a ativista e jornalista Sophia Huang Xueqin está desaparecida desde o último dia 19. Além dela, o ativista da área do trabalho Wang Jianbing também está em paradeiro desconhecido. Segundo relatos de fontes anônimas nesta reportagem do South China Morning Post, os dois planejavam, no dia do desaparecimento, viajar de Guangzhou para Shenzhen. Há ainda a informação de que Sophia estaria indo de Guangzhou para Londres, via Hong Kong — a ativista havia recebido uma bolsa de estudos do governo britânico para iniciar seu mestrado. Amigos e familiares suspeitam que ambos tenham sido detidos pela polícia chinesa, que monitora os movimentos de ativistas envolvidos com temas sensíveis, como gênero, relações trabalhistas e Hong Kong — assuntos com os quais os desaparecidos já se envolveram.
Moda cancelada. Imagina você comprar roupas para seus filhos e, tempos depois, dar-se conta de que as mensagens estampadas incluem conteúdo racista e xingamentos? Foi assim que Mogu Mogu se sentiu ao ver que uma peça, comprada na JNBY para sua filha de quatro anos, tinha o texto “bem-vindo ao inferno”. A publicação, feita na plataforma Weibo, viralizou, e logo outros exemplos de conteúdo inapropriado foram divulgados — como “me deixe tocar você” em roupas infantis e imagens de violência racista contra indianos. A empresa, listada na bolsa de Hong Kong, fez uma publicação nas redes sociais pedindo desculpas.
Na China também tem Universal. Não, não é a Igreja, mas sim o parque temático da Universal Studios, famoso destino na Flórida. Com áreas dedicadas à franquia Harry Potter e Kung Fu Panda, o resort acaba de abrir em Pequim, com 10 mil ingressos para o dia da inauguração esgotados em menos de 3 minutos. Desde a proposta da sua criação até a abertura das portas, passaram-se quase 20 anos. A matéria da Sixth Tone conta mais sobre a inauguração deste que é o maior parque da Universal no mundo, e conta também do interesse por parques temáticos baseados em personagens estrangeiros na China. Já foi um início agitado: o pessoal está achando o rolê um pouco estranho na decoração dos quartos da animação do panda lutador. Também teve demissão de um funcionário que filmou por baixo da saia de uma cliente. A mídia internacional parece que não foi convidada para a abertura do parque, segundo tweet do jornalista da BBC Edward Johnson.
Avanço na pauta LGBTQIA+ em Taiwan. Uma decisão da Alta Corte Administrativa de Taiwan decidiu que é inconstitucional exigir provas de cirurgia de redesignação sexual para pessoas que quiserem alterar seu gênero legal, como o registrado em documentos. Com isso, Xiao E será a primeira pessoa a alterar seu gênero legal em Taiwan sem apresentar provas de intervenção cirúrgica. A vitória do caso de Xiao foi anunciada em coletiva da Aliança Taiwanesa para Direitos Civis, que ressalta a importância de decisões como essa para mitigar situações de preconceito na vida de pessoas transgêneras.
Zheng He foi um grande explorador chinês do século XV. Sob seu comando, o império da China chegou a praticamente todos os cantos do mundo. Esta seção é inspirada nele e te convida a explorar ainda mais a China.
Relatório: o South China Morning Post publicou a 4ª edição do seu relatório das tendências da internet chinesa, trazendo números sobre usuários, principais empresas, expansão global e mais. Tem uma versão gratuita e também uma paga, mais completa. Vale conferir.
Arquitetura: quando você pensa em China vem à sua cabeça prédios ao estilo han ou espigões como os de Shanghai? Este link do SupChina mostra que o país tem obras arquitetônicas fenomenais, confira!
Viaje pelas fotos: e por falar em arquitetura, este é um tema que intriga Kris Provoost, fotógrafo nascido e crescido na Bélgica, que fez um belo ensaio sobre detalhes de prédios chineses, publicado na Neocha. Está imperdível.
Professores que aprendem: a professora Li Lan conta neste texto para o Sixth Tone sua experiência ensinando sobre gênero em escolas chinesas por dez anos .
Sobe o som: o Radii traz uma seleção de músicas lançadas na China durante este outono — estação que, por lá, já passa da metade. Vale ouvir.
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