Edição 258 – Visitas a Pequim indicam tentativa de aproximação com os EUA
🎉 Estamos celebrando 5 anos de Shūmiàn 书面! A newsletter foi criada em maio de 2018, em Pequim, por quatro estudantes brasileiros que ansiavam por informar o público brasileiro acerca de coisas que viam diariamente na China. De lá pra cá, a equipe aumentou, pessoas entraram e saíram, projetos começaram (alguns acabaram), e hoje já temos mais de 3.500 leitores na newsletter e mais de 8 mil seguidores nas redes sociais. E tudo isso vem sendo feito de maneira voluntária, ao longo de meia década. Gostaríamos de agradecer a quem nos acompanha, apoia e divulga! <3
Quantas pessoas morreram na China durante a onda de Covid-19 no final do ano passado? Lançado no início do mês com um atraso atípico, o relatório do Ministério das Relações Civis não trouxe informações sobre o número de cerimônias de cremação realizadas no último trimestre de 2022. Divulgado desde 2007, esse dado também foi omitido dos relatórios locais de diversos governos provinciais e municipais, segundo apuração do South China Morning Post. De acordo com Pequim, 83.150 pessoas morreram por causa do coronavírus entre dezembro e fevereiro – mas críticos apontam que haveria grande subnotificação. A comparação entre cremações nesse período e os números do ano anterior seriam uma forma de verificar a letalidade do vírus no país após o fim da estratégia de Covid zero.
IRPF 2024. Uma das pautas mais faladas pelo governo Xi Jinping em 2021, a discussão sobre a “prosperidade comum” também incluía uma questão sobre aumento de impostos sobre propriedade – e o risco de uma manobra dessas para a popularidade do líder. Uma matéria da Bloomberg conta como o governo atual liderou um corte grande da coleta de impostos – mas agora se vê sob pressão para aumentar a arrecadação em meio a demandas fiscais (especialmente no âmbito dos governos locais) e demográficas. Durante a pandemia, uma série de cortes e exceções na coleta de impostos foram feitas para estimular a economia.
O governo chinês tem delegacias informais operando em outros países? O que se sabe é que existem operações de intimidação de dissidentes no exterior. Nesta terça-feira (20), um ex-sargento da polícia de Nova York e dois cidadãos chineses foram julgados por envolvimento em esforços de intimidação e repatriação de um fugitivo chinês em território estadunidense. A vítima, Xu Jin, é um ex-funcionário do governo chinês acusado de aceitar suborno. Parte das atividades dos agentes envolvia ameaçar familiares de Xu nos Estados Unidos e na China, uma tática tradicionalmente usada contra dissidentes que emigram. A The Economist fez uma reportagem especial em dois podcasts relatando a experiência de uigures que fugiram de Xinjiang e como eles lidam com a intimidação de seus familiares
É temporada de visitas de bilionários. No final de maio, Elon Musk aterrissou na China pela primeira vez desde 2020. Musk mal chegou e já se encontrou com o ministro de relações exteriores Qin Gang – que até usou uma analogia com carros para falar sobre a relação entre os EUA e a China (estamos torcendo que não seja um daqueles Tesla com direção autônoma). O bilionário é figura carimbada e bem vista no país, como já comentamos por aqui, e a China é importante para a Tesla: a fábrica em Shanghai, a maior da empresa, passou a produzir o Modelo Y para exportação para o Canadá em abril deste ano.
Mal um bilionário foi embora e já chegou outro: Bill Gates aterrissou em Pequim na quarta (14) e foi recebido por Xi Jinping na sexta-feira. Ambos discutiram desafios globais no âmbito da tecnologia e da saúde e estavam bem amigáveis, com Xi enfatizando o papel dos vínculos entre chineses e estadunidenses como a fundação das relações bilaterais.
Dois dias depois, o secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, marcou presença na capital – teve cobertura ao vivo da BBC. A viagem fora remarcada após o incidente com o balão de vigilância que apareceu nos Estados Unidos no início do ano. A agenda do secretário de Estado incluiu conversas com Qin Gang (durante 7 horas!) e Wang Yi (ex-chanceler), mas havia incerteza se um encontro com o líder do país estava confirmado. Contudo, Blinken e Xi conversaram por 35 minutos na segunda (19), o presidente chinês indicou que houve progresso no diálogo e as conversas de alto escalão foram retomadas formalmente. Enquanto Blinken disse que há muitos pontos de divergência, Xi pareceu mais otimista. O governo da China e o governo dos EUA lançaram press releases sobre o encontro. O China Talk compilou algumas das reações chinesas à visita. Mas quase deu para esse tom mais amigável se manter: na quarta (21), o presidente dos EUA Joe Biden chamou Xi Jinping de “ditador” ao falar sobre o incidente do balão em um evento. Pequim respondeu de forma contundente e disse que a fala foi uma “provocação política”.
Com grandes poderes. Além das visitas de figuras-chave da política e economia dos EUA, a última semana teve outro momento importante para a diplomacia chinesa: a criação da parceria estratégica com a Palestina, a partir da recepção com honrarias do líder Mahmoud Abbas, que chegou na quarta (15). Abbas se encontrou com o premiê Li Qiang e também com Xi Jinping. Na conversa, os dois presidentes enfatizaram a importância da solução para o conflito com Israel e a China sinalizou interesse novamente em ser possível parte ativa na negociação. Isso também manda uma mensagem para os EUA, como resume o China Digital Times. De fato, a China demonstra uma postura nova nos últimos tempos, com a oferta de mediação do conflito no Iêmen e já havia se manifestado sobre apoiar uma solução entre Israel e Palestina, logo após o sucesso no restabelecimento das relações entre Irã e Arábia Saudita. Não é de hoje que a China vem se posicionando como uma potência mundial capaz de lidar com problemas globais, mas o otimismo da participação no processo de paz entre Israel e Palestina precisa ser visto com cautela, afirma o especialista William Figueroa. Não é à toa que são todos casos do Oriente Médio: a região é ao mesmo tempo cada vez mais atraente para a China e um poço de fracassos diplomáticos dos EUA.
Gordofobia e padrões de beleza. No mês passado, a influenciadora digital Cuihua, de 22 anos, morreu em um campo de treinamento onde esperava perder dois terços de seu peso. A jovem compartilhava vídeos de sua jornada pelo app Douyin, na expectativa de inspirar outras pessoas a emagrecer. Segundo dados do governo, em 2022, 50,7% da população chinesa adulta estava acima do peso, enquanto 16,4% era obesa. No entanto, o ideal de magreza feminina chinês muitas vezes mira abaixo de níveis saudáveis: como relatou um treinador citado por uma reportagem da Sixth Tone, 90% do público dos centros de perda de peso é de mulheres entre 50 e 75 kg. No começo deste mês, a companhia aérea Hainan Airlines anunciou uma política de suspensão de comissárias de bordo com “sobrepeso”: entre 5% a 10% de excesso sobre a fórmula altura em centímetros menos 110. A medida foi duramente criticada pelo público chinês nas mídias sociais, especialmente por ser aplicada apenas às mulheres.
O mercado de trabalho na China é um assunto que segue relevante. No ano passado, contamos sobre disparidades na oferta e demanda por emprego e as dificuldades dos jovens chineses em iniciarem as suas carreiras – muitas vezes optando por continuar os estudos. Nesta edição recente da Ginger River, o tema surge da discussão do futuro da gig economy, que se tornou vital para a economia chinesa – em toda a sua precarização. São números impressionantes: das 402 milhões de pessoas empregadas no país, 84 milhões estão em “novas formas de emprego” que incluem entregadores de comida e motoristas de aplicativos. Isso se relaciona com as ondas de migrações que o país viu nos últimos anos e o crescimento menor desses setores pode afetar a população, inclusive com um retorno às áreas rurais.
Outro ponto interessante é a mudança geracional que vem acontecendo em diversas fábricas. Esta matéria da Reuters conversa com os filhos de donos de fábricas herdadas de uma fase em que a manufatura chinesa era imbatível. Hoje, a China vem perdendo parte desse poder de ser “a fábrica do mundo”, especialmente para a Índia. Essa segunda geração de industriais precisa enfrentar novas demandas dos trabalhadores e modernizar métodos de produção.
Moving fast and breaking things. Correndo atrás dos Estados Unidos no desenvolvimento de inteligências artificiais, às vezes a China esbarra em desafios próprios. No dia 13 deste mês, durante o lançamento de uma nova IA, o CEO da Qihoo 360, Zhou Hongyi, apresentou os mecanismos de moderação de conteúdo que o produto utiliza. O esquema exibido pelo executivo se espalhou pelo Weibo, para então logo ser censurado: no dia anterior, aquele havia se tornado o primeiro modelo aprovado pela revisão do Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação, e o esquema permitia adivinhar alguns dos temas considerados sensíveis pelo governo. Vale ler a breve análise disponível no China Digital Times.
Outros problemas são menos específicos, mais globais: preconceito e fakenews. Como reportou a Rest of World, uma plataforma chinesa de chatbots customizáveis foi removida das lojas de apps pela empresa responsável após diversos relatos de discriminação de gênero contra as usuárias e sexualização das personagens femininas. Enquanto isso, no aplicativo de vídeos curtos Kuaishou, um soldado ucraniano postava vídeos culpando os Estados Unidos pela guerra em seu país. Usuários descobriram que as postagens eram, na verdade, realizadas em Henan, usando imagens criadas com tecnologia de síntese profunda – contrariando leis pioneiras chinesas publicadas em novembro do ano passado. Apesar disso, o soldado sintético atraiu 400 mil seguidores ao longo de 2 meses na rede.
Painel: em mais uma edição do Mulheres na Sinologia, dessa vez sobre políticas públicas no Brasil e na China, a Observa China 观中国 receberá Laura Boeira, Melissa Cambuhy e Isis Paris Maia, com moderação de Aline Tedeschi. Vai rolar nesta quinta-feira, 22/06 às 20h, ao vivo pelo YouTube.
Entrevista: a ex-presidenta e atual diretora do Banco dos Brics Dilma Rousseff conversou com a jornalista Liu Xin para o programa The Point, da CGTN. Ela falou sobre o que é o banco, suas prioridades e a sua importância no cenário multilateral.
Fotos: está em vias de demolição o Picun Museum, único museu da China criado por trabalhadores migrantes para contar a própria história. Vale conferir as imagens neste fio e nos links indicados.
Biblioteca: não foi só a biblioteca de Alexandria que foi destruída de forma trágica por um incêndio. Este texto do LitHub conta da biblioteca de Hanlin, fundada no século VIII e destruída durante a Rebelião dos Boxers em 1900.
Feminismo: bora conhecer alguns termos em mandarim usados por feministas chinesas.
Fotorafia: o Museu de Arte de Pudong, em Shanghai, inaugurou uma mostra com quase 200 fotografias do premiado honconguense Liu Heung Shin, que chegou em Pequim em 1978 e registrou momentos históricos nas décadas seguintes. Para quem não pode ir, vale conferir algumas imagens no Photography of China.
Saiu o teaser trailer da versão da Netflix da adaptação O Problema dos Três Corpos, primeiro da trilogia grandiosa de Cixin Liu. Comentamos lá no nosso Twitter.