Edição 172 – Principal julgamento de assédio termina inconclusivo
Acabou o jardim secreto. Há alguns bons anos, a internet chinesa se divide em setores, ou “jardins com muros”, que funcionam para barrar a presença de competidores nos famosos superapps. Isso ocorre principalmente entre o Alibaba e o WeChat, que utilizam nos apps os seus meios de pagamento (Alipay e WePay, respectivamente) como padrão, em detrimento de outros. Acontece em outros casos também: visualizar vídeos do Douyin (da ByteDance) dentro do WeChat, por exemplo, não rola. As novas regulações parecem indicar que isso vai ser passado, segundo o Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação chinês, em reunião com as principais empresas do setor: atualizações para que não haja bloqueio de compartilhamento de links de rivais deveriam ter sido disponibilizadas até sexta-feira (17), sob risco de multas. As gigantes de tech avisaram que iriam obedecer e o WeChat implementou uma série de mudanças, como conta o South China Morning Post. A notícia é boa para usuários, que terão mais interação entre aplicativos.
Na semana passada, falamos sobre a crise da Evergrande e a preocupação que isso gerou no mercado financeiro chinês. Teve venda de 11 milhões de dólares em ações de um dos principais acionistas na sexta-feira (17). A turbulência atingiu as bolsas em Hong Kong e nos EUA e também bateu na Ibovespa hoje (20), especialmente para as commodities, conta o Estadão. Esta notícia da Bloomberg afirma que o governo chinês injetou dinheiro no sistema bancário em meio ao aumento de pedidos de financiamento gerados pela situação da gigante do setor imobiliário. Ainda a Bloomberg, mas em outra reportagem, conta que já estão acontecendo protestos devido a obras não inacabadas pela empresa. Analistas que acompanham o cenário chinês se dividem sobre isso ser ou não um momento “Lehman Brothers”, mas observam com cautela um possível aperto no setor imobiliário do país. Ficaremos atentos por aqui também.
Tudo tem um custo. A startup chinesa de e-commerce de roupas baratíssimas Shein já apareceu aqui na newsletter, após uma matéria dupla da Caixin sobre o seu sucesso entre a geração Z ocidental e também sobre a falta de transparência nas suas práticas. Agora foi a vez de a Sixth Tone investigar a empresa de fast fashion, começando por Guangzhou, sede principal da sua produção de roupas, e visitando oficinas em situação precária. Em uma prática comum da indústria, a startup se vale de subcontratação para dar conta dos pedidos e, pela matéria, parece não estar muito interessada nas condições trabalhistas dos funcionários terceirizados.
Hong Kong fechada. Hong Kong teve mais uma semana agitada e o ritmo não deve diminuir tão cedo. Isso porque o secretário de segurança, Chris Tang, declarou que novos crimes devem ser adicionados à Lei de Segurança Nacional. O mesmo dia, terça-feira (14), trouxe mudanças também para quem já está preso: o grupo Wall-fare, que lutava pelos direitos de encarcerados, anunciou o fim de seus trabalhos, conforme apuração da RTHK. Enquanto isso, civis se mobilizavam para arquivar o conteúdo digital do Museu da Praça da Paz Celestial — depois de confiscar obras, o que contamos aqui, a polícia ordenou que o site também saísse do ar.
Hong Kong aberta. Em seu relatório anual sobre liberdade econômica pelo mundo, o Fraser Institute voltou a coroar Hong Kong como a economia mais aberta do mundo. No entanto, ressaltou que a situação política atual pode afetar esse status muito em breve. Pequim se manifestou sobre o assunto, afirmando que não há com o que se preocupar.
É sobre isso, e tá tudo… Hong Kong passou por eleições no último final de semana. Foi a primeira exclusivamente com candidatos “patriotas“, contando com a participação de 4.800 eleitores (0,06% da população) e 6 mil policiais. Um número muito maior de eleitores participou do pleito macauense na semana anterior, demonstrando, por meio de abstenções e votos brancos ou nulos, os desafios impostos por eleições mais amplas (21% da população), porém, envolvendo apenas candidatos patrióticos.
O Consulado da China no Rio foi alvo de um atentado a bomba na última quinta-feira (16). Felizmente não houve feridos, mas o caso gerou preocupação pela violência. O governo chinês condenou o ato e pediu celeridade nas investigações – até o momento, o autor do atentado não foi identificado. O caso ganhou repercussão também na China, onde ficou entre os 30 assuntos mais comentados nas redes sociais, além de ter virado notícia. A Rede Brasileira de Estudos sobre a China divulgou uma nota condenando o ato violento e de cunho xenófobo. A Shūmiàn endossa as manifestações de repúdio. O governo brasileiro, até o fechamento desta edição, não havia se pronunciado sobre o caso. Já missões diplomáticas de outros países no Brasil, como os Estados Unidos, e instituições brasileiras, como a OAB, manifestaram seu repúdio.
Por falar nisso, Xi Jinping gravou um vídeo no qual enfatizou a importância da relação da China com países latino-americanos, mas o Brasil não estava entre os destinatários. Isso porque a mensagem foi enviada para o encontro da CELAC, realizada no México — mas o Brasil decidiu ficar de fora da organização desde 2020. A decisão, do governo Jair Bolsonaro, se deu por condenação à participação de países como Cuba e Venezuela no grupo.
Tudo junto e misturado. Na semana em que a China formalizou seu pedido para participar da Parceria Transpacífica, ela viu um país chave do tratado comercial, a Austrália, firmar acordo com os Estados Unidos e com o Reino Unido para compra de um submarino nuclear. Essa compra é parte da AUKUS, uma parceria voltada para defesa, anunciada pelo presidente dos EUA, Joe Biden, ao lado dos primeiros-ministros Boris Johnson (Reino Unido) e Scott Morrison (Austrália). Durante a teleconferência, os três enfatizaram a importância de se fortalecerem na “região do Indo-Pacífico”, em clara sinalização anti-China, como mostra este texto do The New York Times. O governo chinês não gostou e negou que a decisão de integrar a Parceria Transpacífica tenha qualquer relação com a ofensiva australiana. O governo da Austrália, com quem Pequim tem divergências desde que o 5G da Huawei foi barrado, demonstrou resistência à entrada dos chineses no bloco comercial.
Por falar em junção de forças em contraposição à influência chinesa, a União Europeia anunciou um pacote de infraestrutura chamado “Great Gateway”. A medida foi divulgada pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em seu discurso anual. Ela afirmou, sem citar diretamente a China, que o bloco precisa empenhar um papel mais ativo no mundo e criar caminhos, não dependências. A medida se soma ao pacote de infraestrutura anunciado por Biden este ano, ambos com a intenção de conter o alcance da Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative, o BRI), anunciada em 2013 pela gestão Xi Jinping.
Nome é nome. Para além de questões econômicas e comerciais, as divergências com os Estados Unidos voltaram a esbarrar em Taiwan na última semana. As relações entre Pequim e Washington pareciam mais calmas com a ligação entre Xi Jinping e Joe Biden, como contamos aqui. Mas, na sequência, começaram a ser publicados relatos de que o líder chinês teria se recusado a encontrar-se pessoalmente com o estadunidense, o que foi negado, segundo a Reuters. Verdade ou não, as relações estão abaladas, como conta este texto do SCMP, e Beijing vai pressionar para que o nome Taipei não seja substituído por Taiwan no escritório em solo estadunidense. Por trás da nomenclatura está o debate sobre como os países veem a ilha, reivindicada pelos chineses como parte de seu território desde que os nacionalistas se mudaram para lá após a chegada dos comunistas ao poder, em 1949. Utilizar o nome Taiwan indica algum nível de reconhecimento da soberania do território em relação à República Popular da China.
O julgamento do caso mais famoso de assédio sexual na China terminou de maneira inconclusiva por “falta de evidências” na terça-feira (14), conforme relatou o The New York Times. O processo movido pela então-estagiária Zhou Xiaoxuan (conhecida como Xianzi) se baseia em sua acusação de assédio, ocorrido em 2014, contra o famoso apresentador da CCTV, Zhu Jun. Ela acusou o apresentador em 2018 e o julgamento ocorria (principalmente atrás de portas fechadas) desde dezembro de 2020. O caso se tornou um símbolo do #metoo na China, recebendo apoio local e da diáspora chinesa. O juiz julgou que as provas não eram suficientes para uma condenação, mas Xianzi lançou uma nota com críticas a certos procedimentos, e afirma que vai apelar.
Contudo, o silêncio reinou nas redes sociais após a plataforma Weibo suspender temporariamente algumas contas que engajaram na discussão do julgamento. Em dezembro, a presença de manifestações de apoio presenciais e nas redes chinesas foram mais visíveis, como relata Shen Lu no Protocol. Mas dessa vez, Xianzi enfrentou um público mais hostil na saída do tribunal, segundo a AP News. Para ler com o seu cafezinho: o Made in China Journal adaptou para texto uma palestra dela sobre como é ser sobrevivente de um caso de abuso, ativismo feminista e a (auto) censura online.
Wikimedia bane superusuários chineses. Na última semana, em uma ação sem precedentes, a Wikimedia — responsável pela Wikipedia e outras plataformas de conhecimento aberto — baniu sete superusuários chineses (com acesso excepcional a dados e poder de aprovação ou reprovação de publicações) e removeu poderes administrativos de outros 12. O site Hong Kong Free Press afirmou que a ação foi tomada em resposta a uma investigação feita pelo veículo a respeito de ameaças que esses usuários da China continental teriam feito a usuários honconguenses. Embora a notícia não tenha ganhado grande repercussão, valeu um editorial no estatal Global Times, questionando a decisão e a suposta neutralidade da Wikimedia.
Chega de vício. Depois de o governo chinês anunciar medidas para conter o tempo que crianças e adolescentes passam jogando online, uma novidade deve mudar a vida de muita gente na China: o Douyin (o Tik Tok chinês) limitou a 40 minutos o tempo que jovens podem usar o aplicativo diariamente. Essa medida vem na esteira do que contamos aqui há algumas semanas sobre a regulação de algoritmos na ciberesfera chinesa.
Os reguladores estão de olho no amor entre homens na TV, conta a Sixth Tone. As séries adaptadas de histórias danmei ou boys’ love, viraram febre dentro e fora da China, o que chamou atenção de setores mais conservadores como contamos aqui. A direção da agência reguladora de TV se manifestou na quinta (16) sobre o excesso dessas adaptações, que as produções devem aderir mais “ao realismo”, resistir ao lucro excessivo e trazer entretenimento saudável. A crítica seria que esses dramas são mal feitos e servem apenas para lucrar em cima de fãs de maneira negativa, especialmente do público mais jovem.
Enquanto isso, o exemplo positivo veio da atleta do vôlei Sun Wenjing, que anunciou nas redes sociais que é lésbica. Ela postou uma foto e uma bela declaração para a namorada e recebeu majoritariamente comentários positivos, conta o South China Morning Post. Em julho, a jogadora de futebol Li Ying havia assumido ser homossexual e postou foto com a namorada, como contamos aqui, mas acabou apagando a postagem devido a comentários homofóbicos.
Futebol sem alma. Nos últimos anos, o governo chinês tem se empenhado em tornar o país uma potência do futebol, alterando profundamente o cenário desse esporte por lá. Grandes investidores compraram times e construíram estádios para agradar autoridades locais e surfar no marketing positivo. Futebol virou um verdadeiro negócio, mas nada lucrativo: as folhas de pagamento cresceram exponencialmente sem serem acompanhadas de receitas suficientes para cobri-las. Agora, com diversos times fechando as portas e desaparecendo, o governo adota medidas para conter esses problemas. Sentindo falta de alguém nessa história? Pois é, os torcedores. Futebol não vive sem as torcidas, mas elas são basicamente ignoradas por todos os envolvidos no futebol chinês. As mudanças atravessadas pelos fãs do esporte são tema de uma matéria do The World of Chinese. Vale o cafezinho!
Falando em futebol: escute os alentos e cânticos das torcidas de times chineses disponíveis no site Fan Chants.
Cinema: desde 2019 procurando o hit honconguense Memories to Choke On, Drinks to Wash Them Down em algum serviço de streaming? Reserve seu 7 de Outubro e tire o atraso (de qualquer lugar do mundo).
Artigo: o intelectual Wang Huning é uma das pessoas mais importantes na produção do pensamento político chinês e esteve no Comitê Central nos governos de Jiang Zemin, Hu Jintao e Xi Jinping. O Reading the China Dream traduziu um dos seus textos mais famosos, da década de 80: The Structure of China’s Changing Political Culture. Vale ler.
Fotografia: Youqine Lefèvre é uma fotógrafa que foi adotada na China, em 1994, por uma família belga – esta matéria da Vice conta sua história. Youqine lançou o projeto The Land of Promises focado tanto na sua jornada pessoal de volta ao país, quanto uma discussão sobre as consequências da política do filho único.
Sem sobra, nem mesmo de mooncake: todo ano após o Festival do Meio-Outono, chineses enfrentam o desafio de comer uma quantidade imensa de doces típicos. Muitos acabam sendo jogados fora. Um grupo em Shanghai focado em estilo de vida sustentável busca reduzir o desperdício.
Relato de viagem: você conhece a história de Xu Xiake? Foi um mochileiro e escritor da China antiga, durante a dinastia Ming, cujas viagens inspiram viajantes e historiadores até hoje. Leia mais nesta matéria do Think China.
Idolatria: dois links para pensar nas reformas no setor de entretenimento. O primeiro é a análise de Adam Ni, incluindo um aprofundamento nos documentos relevantes. O segundo é o texto de Carla Viveiros para o Observa China.