Edição 244 – Fim das Duas Sessões e vitória para a diplomacia chinesa
Fim de festa. Na segunda-feira (13), encerraram os encontros que marcam as Duas Sessões, evento anual da política chinesa. O deste ano, por ser posterior ao Congresso Nacional do PCCh, teve algumas tarefas burocráticas adicionais, ainda que não sejam surpresa — como a confirmação de membros do Politburo para cargos importantes. Xi Jinping assumiu seu terceiro mandato como presidente. Seu aliado Li Qiang foi nomeado como primeiro-ministro. O novo PM tem ganhado destaque na mídia por ser próximo do empresariado e já ter prometido maior abertura do país para o mercado internacional. Segundo a matéria do South China Morning Post, Li tem uma abordagem “pé no chão” e deve fazer uma série de visitas a regiões para aprender como melhorar a gestão com quem atua mais próximo ao cidadão. O Ginger River fez a tradução de boa parte do discurso de Li para a imprensa. Outras confirmações foram Wang Huning, para chefiar a Conferência Consultiva do Povo Chinês, órgão de aconselhamento político do regime, e o relativamente desconhecido Han Zheng, que passou de vice-primeiro-ministro para vice-presidente.
Destaca-se também a reunião de Xi com delegados das forças militares. Como presidente da Comissão Militar Central, ele pediu uma consolidação das capacidades estratégicas do país e das estratégias nacionais das forças armadas e auxiliares – o Nexo conversou com especialistas sobre a questão. Na semana passada, falamos em um novo bordão do líder chinês, nesta semana vem outro já também: a fórmula de 24 caracteres de Xi, algo como “Fique calmo e mantenha a determinação, busque o progresso por meio de estabilidade, realize ações de forma ativa, una-se e ouse lutar” (em tradução livre). A ideia é que o slogan sirva tanto para se referir ao passado quanto para olhar para o futuro — e é uma alusão aos 24 caracteres de Deng Xiaoping.
O encerramento do evento foi marcado pelo discurso de Xi enfatizando, entre outros,a importância e a busca ativa pela “reunificação nacional” de forma pacífica (uma dica: é sobre Taiwan, mas tangencia Macau e Hong Kong). Vale resgatar a versão atualizada (em inglês) do Decoding China, que já apareceu na newsletter, um manual para entender algumas expressões usadas pelo governo chinês.
Liderança. Se você acompanha a gente com frequência, já sabe que a China se tornou a segunda maior exportadora de carros em 2022, e que a maior vendedora dessa modalidade de veículos é chinesa, a BYD. A Technology Review conta neste texto como o gigante asiático fez para dominar este mercado. Segundo os especialistas do MIT (Massachusetts Institute of Technology) consultados, o segredo para uma ascensão acima do esperado foi a aposta e o papel do governo chinês no desenvolvimento desta indústria e deste mercado. Os investimentos começaram ainda no início dos anos 2000.
Bora deletar. Se a proteção de dados ficou em segundo plano — mas não deixou de ser uma preocupação — em muitos lugares durante a pandemia, ela agora é argumento para que dados pessoais sobre Covid-19 sejam apagados. Isso vem sendo feito pela cidade de Wuxi, na província de Jiangsu, como mostra o Sixth Tone. De acordo com o centro de megadados da cidade, um bilhão de dados pessoais foram deletados, além dos 40 aplicativos ligados ao controle de medidas da Covid-19. Wuxi, contudo, não está sozinha, a Caixin disse que essa limpeza de dados também foi feita por Guangdong. Relatos recentes, como contamos aqui, dão conta de o quanto o governo vem fazendo para deixar o passado pandêmico para trás.
Partiu, China. Depois de três anos sem turismo internacional, as portas do gigante asiático devem se abrir para os laowai. Nos Estados Unidos, a embaixada da China já anunciou que começará a emitir vistos para turistas. O governo chinês vem tomando iniciativas para reaquecer a economia após os duros anos de Covid-19, mas o turismo interno ainda não atingiu as marcas pré- pandemicas. Para tentar fomentar o setor, pessoas de todo o mundo que tinham planos de visitar o gigante asiático e foram impedidas por conta das medidas restritivas durante a Covid-19 podem fazer malas e preparar o passaporte: o governo chinês informou que vistos de longa duração emitidos antes de 2020 e que ainda estejam válidos serão aceitos. Basta comprar um voo e ir. Será que isso pode dar uma impulsionada na economia?
Na surdina, uma grande conquista diplomática. Na sexta-feira (10), os governos do Irã e da Arábia Saudita anunciaram o restabelecimento dos laços diplomáticos após negociações mediadas pela China. Foram cinco dias de conversas facilitadas por Wang Yi em Pequim até a declaração de que as relações bilaterais, rompidas em 2016, deverão ser normalizadas com a reabertura de embaixadas em dois meses e a reativação de acordos econômicos e securitários. A Panda Paw Dragon Claw mostra como a reaproximação de sauditas e iranianos é uma vitória diplomática para a China, mesmo não tendo sido a única responsável pela facilitação do acordo — Iraque e Omã também foram fundamentais no processo de negociação. No Oriente Médio, as reações ao anúncio foram bastante positivas e as consequências geopolíticas podem ser grandes: analistas ouvidos pelo SCMP destacam que o restabelecimento de laços pode ser instrumental para resolver a guerra no Iêmen, onde Riad e Teerã apoiam militarmente lados opostos do conflito. Agora, segundo o The Wall Street Journal, a China prepara-se para sediar uma reunião de cúpula entre o Conselho de Cooperação do Golfo e o Irã.
Na esteira do lançamento da Iniciativa de Segurança Global (ISG), o anúncio da reaproximação entre Irã e Arábia Saudita serviria de exemplo da abordagem chinesa para resolução de conflitos. O pesquisador Moritz Rudolf, do Paul Tsai China Center, assinala que a China está investindo pesado em se tornar uma potência no direito internacional e que essa mediação entre sauditas e iranianos é um bom exemplo da perspectiva de Pequim. Já o ex-diplomata da Índia M. K. Bhadrakumar escreve que o impacto da atuação chinesa na questão possivelmente abre alas para uma nova era da política internacional.
Contradições? Um dos principais princípios da ISG, reforçado na declaração de reatamento de laços diplomáticos entre Arábia Saudita e Irã, é o respeito à soberania e a não interferência em assuntos domésticos. Contudo, na última semana, a Micronésia e o Canadá lançaram acusações e suspeitas sobre a China no sentido oposto. De saída do cargo, o presidente micronésio, David Panuelo, publicou uma carta em que relata como Pequim tenta subornar e pressionar lideranças do país, inclusive com ameaças pessoais e patrulhamento de áreas marítimas. O SCMP chamou atenção para o que seria a revelação de uma tentativa de suborno por parte de Taiwan: na carta, Panuelo afirma que a Micronésia receberia 50 milhões de dólares em investimentos (cerca de 260 milhões de reais) durante um período de três anos e um adicional de 15 milhões num pacote de apoio e finalização de projetos de infraestrutura que estavam na mão de Pequim se passasse a reconhecer Taipei como governo legítimo da China. Já do outro lado do Pacífico, o Canadá abriu investigações sobre possível interferência chinesa nas eleições de 2019 e 2021. A China negou as alegações de ambos os casos e chamou a investigação canadense de “ridícula”.
Por falar em resolução de conflitos, Xi Jinping deve ir à Rússia e à Ucrânia. Ainda não há nada oficial, mas é o que vem sido noticiado pela imprensa internacional. De acordo com a Reuters, o encontro entre Xi e Putin aconteceria nos próximos dias. Há ainda a perspectiva de que ele emende essa viagem com uma ida a Kiev, onde se reuniria com Volodomyr Zelensky, diz a NPR. Ainda não se sabe detalhes das conversas, mas em meio à guerra entre Rússia e Ucrânia, não é demais dizer que uma possível negociação de paz pode estar em gestação.
A quebra do Silicon Valley Bank (SVB) afeta empresas chinesas. O banco comercial estava na lista dos 20 maiores dos EUA e atuava principalmente com Venture Capital e foco em startups. No desespero dos que buscam recuperar dinheiro aplicado, estão empresas chinesas. O banco atua na China desde 1999 e tem 50% de uma joint venture chamada SPD Silicon Valley Bank, junto com o Banco de Desenvolvimento de Shanghai Pudong (SPDB). Criado em 2012, o SPD foca em biotecnologia e startups de saúde. Há indicações de que a parte do SVB será adquirida pelo SPDB. Segundo matéria da CNN, o SPDB anunciou que não houve impacto para seus clientes, pois possui certa independência e está registrado na China. A situação trouxe preocupação no setor chinês, com relatos de dificuldade em acessar contas e retirar dinheiro — mas não de forma generalizada.
Todos os prêmios ao mesmo tempo. No último domingo (12), o filme Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo levou sete das 11 categorias do Oscar a que concorria: melhor filme, direção, roteiro original, montagem, atriz e coadjuvantes. Uma vitória avassaladora de um filme relativamente pouco assistido não viria, é claro, sem críticas e todo tipo de polêmica. Mas nada ofuscou o fato de que, pela primeira vez, múltiplas pessoas de origem asiática receberam um Oscar em uma mesma edição, com uma história sobre a diáspora chinesa e na esteira de um aumento de casos de xenofobia contra esse grupo.
Em sintonia com a temática do filme, os discursos de agradecimento focaram em mães e na representatividade asiática nos Estados Unidos. Michelle Yeoh (nascida na Malásia, de família chinesa), a segunda mulher não branca e primeira asiática a receber o Oscar de melhor atriz, dedicou seu prêmio a jovens “que se parecem” com ela e motivou mulheres mais velhas a não desistirem de seus sonhos. O clipe do seu discurso circulou bastante pelo Weibo, com muitos comentários positivos e chamando-a de “orgulho da Ásia”. Ke Huy Quan (nascido no Vietnã), melhor ator coadjuvante, destacou sua trajetória como refugiado. Em comum, os dois atores e o co-diretor Daniel Kwan têm também uma história que passa por Hong Kong. Vale ler este fio do historiador e ativista Jeffrey Ngo, que analisa as vitórias sob a perspectiva da luta honconguense por sua autodeterminação, passando pelo papel que a região teve em criar identidades transnacionais, algo mais difícil sob a Lei de Segurança Nacional. O filme também parece ser o único ganhador do prêmio principal com diálogos em cantonês.
Na esteira das Duas Sessões e do 8 de março, o governo chinês destacou alguns números sobre sua atuação no combate à violência contra mulheres e crianças. Desde 2021, 3.152 suspeitos de envolvimento com o tráfico de crianças e de mulheres foram processados, uma alta de 16% em relação aos 2 anos anteriores. Nos últimos 5 anos, 290 mil pessoas foram processadas por crimes contra menores, sendo 131 mil por algum tipo de violência sexual, que recentemente se tornou o crime mais cometido contra essa parcela da população. A alta no registro desses crimes é atribuída a mudanças na lei: 2021, foi instituído um sistema de obrigatoriedade de denúncias de casos contra menores; e no final do ano passado, foi aprovada a atualização da Lei de Direitos e Interesses das Mulheres, que passou a ter efeito no primeiro dia de 2023.
Espaço seguro. O aplicativo de compras e lifestyle Xiaohongshu é uma plataforma bastante utilizada por mulheres — já contamos que até 2021, 90% dos usuários se identificavam como tal. E não apenas para as mulheres cis: o app não retira ou esconde conteúdo sobre transsexualidade, como conta essa matéria da Rest of World. A escolha da moderação e gestão do algoritmo transformou o Xiaohongshu em um bom lugar para aprender sobre transição hormonal, burocracia com documentação e mensagens afirmativas sobre experiências de pessoas trans chinesas.
Zheng He foi um grande explorador chinês do século XV. Sob seu comando, o império da China chegou a praticamente todos os cantos do mundo. Esta seção é inspirada nele e te convida a explorar ainda mais a China.
Molho de soja: também conhecido no Brasil pelo nome japonês shoyu, esse ingrediente fundamental da culinária chinesa tem suas peculiaridades na culinária de Hong Kong, como conta em duas reportagens a jornalista Ilaria Maria Sala.
Galã: relembre nove papéis marcantes de Chow Yun-Fat, ator dos anos áureos do cinema honconguense.
Caligrafia: você sabe as diferenças entre o chinês simplificado e o tradicional e como elas surgiram? A Sixth Tone conta a história das transformações dos caracteres chineses ao longo dos séculos.
Resistência: este texto do The China Project conta como a minoria étnica dong transformou a música em forma de resistência e reforço da sua identidade e cultura.
Mais mulheres: conheça Ren Fei, uma editora em busca de aumentar os livros escritos por mulheres publicados na China. Ela relata como foi traduzir o coreano Kim Jiyoung, Nascida em 1982 e a resposta que se seguiu.
Falando nelas: a leitura de março no Clube do Livro é Love in a Fallen City, uma coleção de histórias de Eileen Chang. Nascida em 1920 na classe alta de Shanghai, Chang vê a cidade ocupada por tropas estrangeiras, vai para Hong Kong e, por fim, para os EUA. Sua obra já foi para o cinema, como Desejo e Perigo de Ang Lee.
Âncora virtual: testando os limites do uso da inteligência artificial — ou a falta deles —, o People’s Daily anunciou a chegada de uma nova âncora: Ren Xiaorong, um produto da tecnologia, não uma pessoa em carne e osso. Será que funciona? O assunto deu o que falar no Weibo.
O fotógrafo Zhang Xiao cria estátuas de deuses imaginados sob medida para atender às ansiedades contemporâneas.