Edição 199 – Sob críticas, governo reavalia lockdown em Shanghai
Ainda que a situação em Shanghai continue complicada, a administração local flexibilizou o lockdown em algumas regiões nesta segunda (11). A maior cidade chinesa registrou um recorde de mais 25 mil novos casos por dia, apesar de ter adotado fortes medidas restritivas. A liberação de algumas áreas comerciais e financeiras gerou surpresa e coincide com uma carta enviada pela Câmara de Comércio da União Europeia ao vice-premiê chinês Hu Chunhua. No texto, empresas estrangeiras pediam que o governo deixasse de adotar “os velhos instrumentos” no combate à Covid-19, levando em conta que a variante ômicron, embora mais facilmente transmissível, é menos letal do que a delta. Entre os apelos ainda foi feito um pedido pela permissão de uso de vacinas de mRNA, ainda não aplicadas nas cidades chinesas.
Este fio do jornalista Chang Che (SupChina) mostra um relato de uma trabalhadora de um comitê da quarentena em Shanghai. Entre as coisas que ela aponta, está o fato de que as testagens em massa poderiam estar ajudando a espalhar ainda mais o vírus em vez de combatê-lo. A semana também foi marcada por críticas à separação de crianças e adultos nos casos em que apenas parte da família testava positivo. Isso foi motivo de uma queixa de diplomatas ocidentais e o procedimento acabou sendo revertido. O Consulado brasileiro em Shanghai também fez parte do apelo. Um caso que chocou o público foi o brutal abatimento de um cachorro que ficou para trás quando os donos foram levados para a quarentena. Esta não é a primeira vez, infelizmente, que isso acontece, como falamos aqui.
Ainda que muita gente coloque a política de tolerância zero à Covid-19 em dúvida, parece que nada vai mudar, como falou o presidente Xi Jinping recentemente. Enquanto isso, em Guangdong, onde começam a surgir casos, já se fala em cuidados antecipados para evitar uma situação como a de Shanghai e há um temor de lockdown.
Mal Carrie Lam anunciou que não concorrerá à reeleição e seu mais-que-provável sucessor já surgiu: John Lee, número 2 do governo desde julho. Único candidato registrado para o pleito de maio, ele já recebeu o apoio de Pequim — que avisou que não vai apoiar mais ninguém e que, se não houver outros candidatos, tudo bem. Menos foi dito sobre a partida de Lam: enquanto a mídia de Hong Kong antecipa a exumação do governo da CEO, o silêncio atípico de Pequim sobre sua aposentadoria é sentido. Quando Lee, ex-secretário de segurança, foi indicado ao cargo de secretário-chefe, especulou-se que seria um sinal de que Hong Kong estaria se tornando um estado policial.
Para quem avalia essa hipótese, a semana foi fértil: o governo avisou que não revelará a lista de livros banidos das bibliotecas públicas; foi aprovada uma lei que pode levar a seis meses de prisão quem recusar entregar seu animal de estimação para a vigilância sanitária em caso de suspeita de infecção; e a agência francesa RFI recordou que a maior parte dos 47 ativistas da oposição presos há mais de um ano por subversão ainda aguardam julgamento e a divulgação de informações sobre seus casos é restringida.
Pico de emissões até 2027. Um novo estudo publicado pela Academia Chinesa de Engenharia na quinta-feira (07) avaliou que a China pode chegar ao seu pico de emissões de gás carbônico até 2027. Isso corroboraria a meta, anunciada pelo presidente Xi Jinping em setembro de 2020, de atingir o ápice de emissões antes de 2030. O estudo também avaliou ser possível atingir a neutralidade carbônica antes de 2060, contanto que seja feita uma “mudança fundamental” no modelo de desenvolvimento chinês. Cabe lembrar que o carvão é a principal fonte energética da China e que minas de exploração de carvão ainda estão sendo abertas no país apesar de suas metas climáticas. Esse é o caso da mais nova mina de Ordos, na Mongólia Interior, capaz de produzir 15 milhões de toneladas de carvão por ano. Ao mesmo tempo, avanços importantes têm sido feitos para expandir a participação de fontes de energia eólica, solar e hidrogênio, como mencionado no novo plano quinquenal de energia do país.
Gostaria de salvar o jogo? Em fevereiro, nós contamos aqui sobre a indústria de jogos de videogame na China. Uma das questões que andava incomodando os fãs era que o governo chinês não liberava licenças para novos jogos desde julho de 2021. Pois bem, liberou. Após mais de 260 dias, a lista de novos títulos saiu hoje (11) e tem 45 jogos domésticos — ainda sem novidades dos internacionais. Chamou atenção não ter nessa leva nenhum jogo da Tencent e da NetEase, as duas gigantes chinesas do setor, mas não é a primeira vez que isso acontece.
Na contramão? Enquanto as imagens do massacre em Bucha geraram condenações instantâneas à Rússia por parte de diversos países, a China adotou um tom cauteloso. O enviado chinês à ONU Zhang Jun disse que o que se viu é muito desconcertante e pediu investigações. Porém, acrescentou à sua fala que é necessário se basear em fatos para comentar o assunto e recomendou que todas as partes evitem fazer acusações infundadas. O Global Times escreveu em editorial que o que aconteceu em Bucha não pode ser usado para “inflamar” ainda mais a situação.
Com isso, a China segue sendo vista pela OTAN como aliada “disfarçada” da Rússia, já que evita fazer declarações claras e firmes sobre seu posicionamento em relação ao conflito entre Moscou e Kiev. De todo modo, o ministro ucraniano das Relações Exteriores agradeceu a solidariedade chinesa aos civis de seu país na primeira reunião bilateral de alto nível desde o início do conflito. Se falamos recentemente aqui que Pequim parecia ter deixado mais de lado a neutralidade, esta semana o tom foi outro quando a China votou contra a exclusão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU. O país asiático argumentou que este movimento seria um precedente perigoso. Na mesma votação, o Brasil se absteve.
Em tempo, a professora e autora Yuen Yuen Ang escreveu um ensaio sobre a posição chinesa na questão da Ucrânia. Ela argumenta que um papel de mediação pragmático é importante para o mundo e também pode ajudar a consertar a relação com os EUA e a União Europeia.
CIPS vs. SWIFT? Muito tem sido especulado sobre como a China pode vir a ocupar os espaços abertos pelas sanções dos EUA e da UE contra a Rússia, sobretudo a exclusão de instituições financeiras russas do SWIFT. O CIPS (Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços), em particular, é uma tecnologia chinesa que vem se destacando no debate. Porém, ele não cumpre as mesmas funções do SWIFT: o CIPS serve para transferências internacionais em RMB, enquanto o SWIFT é um canal para comunicação segura interbancária, que não realiza transferências por si só. Por causa disso, é muito difícil que a tecnologia seja usada pela Rússia como um escape das sanções ocidentais. No entanto, a (crescente) adesão ao CIPS é um indicador da internacionalização e poder financeiro global da China que deve ser observado, como ressalta Emily Jin em análise para o Lawfare Blog.
Escondendo o jogo? A mineradora China Molybdenium reassumiu o controle sobre a mina de cobre e cobalto Tenke Fungurume na República Democrática do Congo. No final de fevereiro, um tribunal em Lubumbashi, polo minerador congolês, afastou a empresa chinesa da administração da mina, a segunda maior do país, após disputas entre acionistas do empreendimento. A estatal Gecamines, parceira congolesa da China Molybdenium na Tenke Fungurume, acusa os chineses de terem escondido dados que evidenciariam reservas de cobre muito maiores do que as negociadas, acusação que já mencionamos aqui. O afastamento da empresa chinesa foi revertido após um acordo com o governo da R. D. do Congo para resolver a questão fora dos tribunais, através de arbitragem internacional.
E vamos de Sul Global. Um novo policy brief de Margaret Myers e Rebecca Ray, publicado pelo Global Development Policy Center e o Inter-American Dialogue, analisa dados financeiros da atuação chinesa na América Latina de 2005 até 2021. O trabalho olha para os dois principais bancos estatais no país asiático: o Banco de Desenvolvimento da China e o China Exim. Dentre as conclusões, as autoras apontam uma mudança no caráter dos empréstimos e uma queda recente nos valores dos investimentos, mas afirmam que mesmo assim a China deve seguir sendo um ator financeiro importante. Myers esteve recentemente em uma audiência para o Senado dos EUA para falar sobre a influência da China na América Latina.
Além disso, em fevereiro, a pesquisadora Stella Hong Zhang publicou um texto no Made in China Journal sobre contratos internacionais realizados por empresas de construção chinesas. Zhang argumenta que, historicamente, esses acordos são parte vital da economia global e da inserção chinesa: mais do que investidora, a China é uma “construtora”. O Latinoamérica Sustentable traduziu para o espanhol.
Mas bah, tchê, até na China? Exportações de erva-mate ganham espaço no mercado chinês, mas de um jeitinho bem diferente do que costuma ser consumido no sul do Brasil e na Argentina, sua maior fornecedora do produto. Na China, a aposta é vender erva-mate como um chá em saquinhos ou em uma moagem mais fina, sem a necessidade de fazer um chimarrão em uma cuia — até encontrada por lá, mas a preços exorbitantes. Só no ano passado, o país asiático importou 100 mil quilos de erva-mate, e cooperativas argentinas estão otimistas com o apetite chinês pela erva, como abordam Fermin Koop e Marina Bello em uma matéria do Diálogo Chino.
Falando em mate, o Radii China publicou uma matéria contando como o Club Mate, uma bebida de mate gaseificado, tem ganhado adeptos na China. Muito famoso na Alemanha, particularmente em Berlim, a bebida vem se disseminando em clubes noturnos de música eletrônica, onde o Club Mate é misturado com destilados (tal como os energéticos aqui no Brasil). A curiosidade ressaltada pela matéria é que leis locais chinesas proíbem o processamento de folhas de mate, favorecendo as importações das bebidas já prontas do exterior. Alô Baer Mate!
As vezes das mulheres migrantes. Com alguma frequência nós falamos aqui sobre a importância e os problemas dos trabalhadores migrantes da China. Desta vez, trazemos este saboroso texto da Sixth Tone sobre um grupo de literatura voltado para a escrita de mulheres migrantes nos arredores de Pequim. Fundado em 2014, o Grupo de Literatura de Picun contou com um total de 300 integrantes desde seu surgimento e é parte da ONG Casa da Mulher Migrante. O trabalho dessas autoras já foi publicado em edições da Picun Literature, da New Worker’s Literature e no periódico Beijing Literature. A edição de primavera da World Literature Today traz alguns ensaios e poemas traduzidos para o inglês.
A outra Xiao Huamei. Ao mesmo tempo em que o público chinês era informado sobre o desfecho do caso Xiao Huamei, vinham a público imagens de uma mulher enjaulada na província de Shaanxi. Após um mês de investigações da polícia local e muito menos comoção da mídia, esse caso acaba de ser encerrado: concluiu-se que, assim como Xiao Huamei, Tao também foi vítima de tráfico humano e também sofria de problemas de saúde mental. Mas, ao contrário do que aconteceu no caso mais famoso, seu marido não vai responder a nenhuma queixa criminal, já que a investigação não encontrou provas de maus-tratos e que o prazo para processá-lo por comprar Tao teria expirado. As autoridades locais anunciaram medidas disciplinares contra 13 oficiais da região e detiveram dois responsáveis pelo tráfico de Tao, que agora passa por tratamento psicológico.
Esse desfecho reacendeu debates sobre a leniência das leis chinesas diante de crimes que afetam majoritariamente mulheres, que são minoria entre os tomadores de decisão no país. Sobre esse assunto, recomendamos a coluna mais recente de Tatiana Prazeres na Folha, discutindo o papel da mulher na sociedade chinesa e a defesa de uma meritocracia no Politburo como mecanismo de inclusão de gênero. Vale a leitura.
Falando em mulheres, o nosso próximo encontro do Clube do Livro será na segunda-feira, dia 18 de abril, às 19h. O livro é “Três Irmãs: As mulheres que definiram a China moderna”, de Jung Chang, sobre as famosas irmãs Soong.
A primeira guerra no metaverso? O acadêmico Shi Zhan, da China Foreign Affairs University, publicou recentemente um texto em que reflete sobre o papel da comunicação e das plataformas na guerra na Ucrânia. Como conta a introdução ao texto, traduzido pelo site Reading the China Dream, Shi é um dos intelectuais chineses pensando as relações internacionais na era digital. As reflexões dele perpassam narrativas, valores, gamificação da realidade e como plataformas/redes sociais mediam (ou não) o que as pessoas aprendem sobre o conflito — inclusive a performance virtual de Putin e Zelensky.
A opinião pública dos chineses sobre a guerra é uma pauta que já apareceu aqui, principalmente com foco na postura de Pequim. O tema de como a mídia e os chineses têm opinado sobre a Ucrânia vem sendo acompanhado por muita gente fora da China nesse último mês, como o WhatsOnWeibo, o China Media Project, e a China Information Operations Newsletter (da Universidade de Oxford).
Zheng He foi um grande explorador chinês do século XV. Sob seu comando, o império da China chegou a praticamente todos os cantos do mundo. Esta seção é inspirada nele e te convida a explorar ainda mais a China.
Artigo: a mestre em cinema Thais Craveiro escreveu um texto exclusivo para o nosso site, a partir da sua pesquisa sobre o filme revolucionário (no sentido mais tradicional da palavra) — “Destacamento Vermelho de Mulheres” (1961). E se você quiser assistir, está no YouTube.
Culinária e história: a chef Jenny Dorsey publicou sua receita de ovos mexidos com tomate no Serious Eats com um belo preâmbulo contando um pouco da história desse novo clássico da culinária chinesa.
Arte: o SCMP resgatou a história da britânica Katharine Jowett. Suas aquarelas retratando Pequim no início do século XX conquistaram até Mao — vale conferir.
Paleontologia: diversos fósseis de aves do cretáceo foram encontrados em escavações próximas da Grande Muralha e duas novas espécies foram identificadas.
Longe dos holofotes: você conhece a história de Jeremy Lin, ex-astro da NBA? A Radii China conta um pouco mais sobre a estrela para além do basquete.
Surrealismo real: a Bienal de São Paulo indicou e a gente reforça que vale conferir a intrigante arte do taiwanês Yung Cheng com suas fotos que parecem muito além da realidade. Confira o trabalho dele pelo Instagram.
Para ficar de boaça: na rede. Num dia à toa. A música de 椅子樂團 The Chairs é um belo convite à preguiça.